Artigo de Conclusão de Curso: O Patinho Feio

e o Processo de Individuação

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O Patinho Feio e o Processo de Individuação The Ugly Duckling and the Individuation Process

Suhaila Aparecida El Faro

Reinalda Melo da Matta1 Instituto Ânima de Estudos Junguianos – Ribeirão Preto – SP – Brasil

RESUMO

O objetivo deste artigo é fazer a leitura simbólica do conto O Patinho Feio com base na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. A autora considera os diferentes símbolos que expressam as etapas e os confrontos enfrentados pelo Patinho Feio ao longo de sua jornada, o que tornou possível o seu desenvolvimento, a sua transformação e a realização da sua totalidade, do seu processo de individuação. Os conceitos junguianos foram amplificados por meio do estudo de autores da mesma linha de pensamento. O conto se refere à história de um cisne que nasceu numa família de patos e acreditou ser um deles, sofrendo toda espécie de preconceito e menosprezo até que, imbuído da força de seu herói arquetípico, ousou partir em busca de sua verdade, um lugar onde pudesse ser aceito. Enfrentando seus medos, os riscos, as dificuldades pelo caminho, finalmente descobre sua verdadeira identidade. Na leitura analítica do conto, a autora transita pelos conceitos de arquétipo materno negativo, sombra, complexo e processo de individuação, além de se referir à importância do herói, sem o qual não há possibilidade de ocorrer o processo de individuação. Durante sua caminhada, o Patinho Feio precisou lidar com seu complexo de inferioridade, confrontar a sombra e recolher suas projeções, sendo necessário para isso um afastamento momentâneo do coletivo e uma imersão profunda em busca de si mesmo. Ao reconhecer-se cisne, houve uma integração de sua verdadeira identidade, trazendo à luz da consciência o que estava guardado em seu inconsciente.

Palavras-Chave: Psicologia Analítica. Individuação. Sombra. Complexo e Inconsciente.

ABSTRACT

The purpose of this article is to make the symbolic reading of the fairytale – The Ugly Duckling – based on Carl Gustav Jung’s Analytical Psychology. The author considers the diferente symbols that express the stages and confrontations faced by Ugly Duck throughout his Journey, which made possible his development, transformation and the realization of his totality, of his individuation process. Jungian concepts were amplified through the study of Other authors with similar thought. The tale refers to the story of a swan that was born in a Family of ducks, and believed to be one of them, suffering all kinds of prejudices, scorns, until, imbued with the strength of his archetypal hero, he dares to go in search of his truth, a place where he can be

accepted. Facing his fears, risks, difficulties along the way, he fanally discovers his true identity. In the analytical Reading of the short fairytale, the author considers the concepts of negative maternal archetype, shadow, complex and individuation process. In addition to the importance of the hero without whom there is no possibility of individuation process to take place. During his Journey, Ugly Duckling had to deal with his inferiority complex, confront the shadow and a deep immersion in Search of himself. When ele recognizes himself as a swan, there is na intergration of his true identity, bringing to the light of consciousness what was stored in his unconscious.

Keywords: Analytical Psychology, Individuation, Shadow, Complex, Unconscious.

INTRODUÇÃO

Na Psicologia Analítica, os contos de fada são muito importantes não apenas para que se compreendam as diferentes etapas de um processo de individuação; eles também se revelam uma importante ferramenta auxiliar no trabalho clínico, à medida que podem trazer à tona os complexos que dormitam à sombra.

Contar essas histórias que se passaram através de múltiplas gerações e que permaneceram vivas até os dias atuais nos faz pensar em sua utilidade e importância para a compreensão do humano e da coletividade. São histórias que vieram de diversas partes do mundo; algumas transformadas, porém sem perder a sua essência.

Segundo Machado(1), os contos de fada referem-se também a uma oralidade, uma vez que foram passados de geração a geração por meio do contar e narrar histórias. Nas palavras da autora, “[…] falar de contos de fada é evocar histórias para crianças, lembranças domésticas, ambiente familiar. Equivale também a uma filiação ao maravilhoso, em que tudo é possível acontecer […]” (Machado, 2010, p. 9).

Na opinião da autora, esse gênero sofreu acusações de elitismo, moralismo e violência, o que gerou certa desconfiança em relação aos contos. Na tentativa de resgatar o gênero, Machado(1) buscou opiniões de outras áreas a fim de obter outros olhares acerca dos contos, respaldando-se na filosofia e na antropologia, como também na psicanálise e em Jung, com seu conceito de arquétipo e do inconsciente coletivo, procurando obter mais respeito para com os contos de fada. Segundo a autora, os contos nos auxiliam no autoconhecimento.

Na psicologia analítica, os contos favorecem a estruturação da consciência. O contar uma história de fadas para uma criança estimula a criação da fantasia. Jung(2) enfatiza: “[…] consciente e inconsciente relacionam-se de forma compensatória, e no inconsciente estão todas as combinações de fantasia que ainda não vieram à consciência e que estão guardadas […]” (Jung, OC 8/2, 1984, §132).

Ao contar essas histórias, podemos ajudar a criança a fantasiar e a encontrar algum prazer, solucionando conflitos que estavam inacessíveis ou ocultos, mas que de alguma forma poderiam emergir na consciência. Por meio do conto a criança vai estruturando o ego, atualizando arquétipos e se preparando para enfrentamentos futuros.

Muitas conexões podem ser feitas em benefício próprio e visando ao processo de individuação de cada um. Segundo Von Franz(3), os contos de fada “são a expressão mais pura e simples do inconsciente coletivo” (p.9, 2019). O inconsciente coletivo se refere àquilo que é comum a todos nós, seres humanos, independentemente do local, sejam cidades, estados ou nações.

Cada conto trabalha um aspecto da vida, da família ou da coletividade; alguns falam de um rei que terá de ser substituído; outros, da ausência do feminino; outros, ainda, do herói que vence o dragão, sem dizer sobre a sombra, a anima ou animus. Todos dizem respeito a um determinado símbolo (ou arquétipo).

Von Franz(3) nos mostra, por intermédio de sua interpretação de diversos contos, a importância destes, lembrando que os contos não refletem o processo de individuação de todas as pessoas porque esse processo é único e ocorre de forma particular, individual, mas afirma que os contos “[…] refletem fases típicas do processo de individuação de muita gente; tais fases típicas são ressaltadas com a atitude da consciência nacional coletiva do povo ao qual elas são relatadas […]” (Von Franz, 2008, p. 273-274).

Com base nos estudos dos autores anteriormente citados neste artigo, pretendo analisar o conto do Patinho Feio; portanto, utilizarei como referencial teórico conceitos da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e discorrerei sobre os seguintes conceitos: processo de individuação, complexo e sombra.

O objetivo deste artigo é relacionar o conto aos conceitos junguianos, fazendo a leitura simbólica dos diferentes símbolos que expressam as etapas e os confrontos enfrentados pelo Patinho ao longo de sua jornada, o que tornou possível o seu desenvolvimento, sua transformação e a realização de sua totalidade, do seu processo de individuação.

A ESCOLHA DO TEMA

Ao escolher o conto do Patinho Feio, me deparei com o sentimento de rejeição e do não pertencimento dele. Em qualquer lugar em que fosse ou em qualquer situação, ele era visto como o mais feio, inadequado e desajeitado. Ele não era um pato, mas, sim, um cisne; no entanto, ele não sabia disso, pois nascera e crescera em meio aos patos. Não conhecia a própria essência. Era um bom nadador, mas não era visto e tampouco valorizado como tal.

Portanto, não foi bem recebido pelos irmãos nem pela mãe, que preferia que ele não existisse. Sofreu todos os tipos de ofensas.

Estes aspectos me incentivaram a pensar em como seria importante discorrer sobre o processo de individuação do Patinho, que foi impulsionado por sentimento de rejeição e de não pertencimento, até descobrir-se um lindo cisne.

A seguir, apresento o conto citado em sua versão original, que data de 1844 e é de autoria de Hans Christian Andersen.

Fazia um tempo adorável de verão no país, e o milho dourado, a aveia verde e os montes de feno empilhados nos prados tinham uma linda aparência. A cegonha andando com suas longas pernas vermelhas tagarelava na língua egípcia que aprendera com sua mãe. Os campos de milho e os prados eram cercados por grandes florestas, no meio das quais havia poços profundos. Era, de fato, um prazer passear no campo. Num local ensolarado, erguia-se uma agradável velha casa de fazenda perto de um rio profundo, e da casa até a margem da água cresciam grandes folhas de bardana, tão altas que sob a mais alta delas uma criança podia ficar em pé. O local era tão selvagem quanto o centro de uma densa floresta. Nesse retiro aconchegante, havia uma pata sentada em seu ninho, esperando que sua ninhada eclodisse; ela começara a se cansar dessa tarefa, pois os pequenos demoravam muito para sair dos ovos e ela raramente recebia visitas. Os outros patos gostavam muito mais de nadar no rio do que de escalar as margens escorregadias e sentar-se sob uma folha de bardana para fofocar com ela.

Figura 1. Fonte: https://pixabay.com/photos/search/lapsed/

Por fim, uma casca rachou e depois outra, e de cada ovo saiu uma criatura viva que ergueu a cabeça e gritou: “Peep, peep...”. “Quack, quack”, disse a mãe, e então todos

grasnaram o melhor que podiam, olhando em volta, de todos os lados, para as grandes folhas verdes. A mãe permitia que olhassem o quanto quisessem, porque o verde é bom para os olhos. “Quão grande é o mundo”, disseram os patinhos quando perceberam que agora eles tinham muito mais espaço do que enquanto estavam dentro da casca do ovo. “Vocês acham que este é o mundo inteiro?”, perguntou a mãe. “Esperem até ver o jardim... estende-se muito além disso, até o campo do pároco, mas nunca me aventurei a tal distância. Vocês estão todos fora?”, ela continuou, se levantando. “Não, eu declaro. O maior ovo ainda está lá. Eu me pergunto quanto tempo isso vai durar, estou bastante cansada disso!” Então, ela sentou-se novamente sobre o ninho. “Bem, como você está indo?”, perguntou uma velha pata, que lhe fez uma visita.

“Um ovo ainda não chocou”, disse a pata. “Não vai quebrar. Mas olhe para todos os outros, não são os patinhos mais bonitos que você já viu? Eles são a imagem de seu pai, que é tão cruel que nunca vem me ver.”

“Deixe-me ver o ovo que não quebra”, disse a pata. “Não tenho dúvida de que é um ovo de peru. Fui persuadida a chocar alguns, uma vez, e, depois de todos os meus cuidados e problemas com os pequeninos, eles estavam com medo da água. Eu grasnava e cacarejava, mas sem nenhum propósito. Não consegui fazer com que se aventurassem. Deixe-me ver o ovo. Sim, isso é um ovo de peru! Siga o meu conselho, deixe-o onde está e ensine as outras crianças a nadar.”

“Acho que vou ficar sentada mais um pouco”, disse a pata. “Como já estou sentada há tanto tempo, alguns dias não serão nada.”

“Por favor...”, disse a velha pata, e foi embora.

Por fim, o ovo grande quebrou e um jovem avançou gritando: “Peep, peep...”. Era muito grande e feio. A pata olhou para ele e exclamou: “É muito grande e nada parecido com os outros. Eu me pergunto se realmente é um peru. Logo descobriremos, no entanto, quando formos para a água. Deve entrar, se eu mesma tiver de empurrar”.

Figura 2. Fonte: https://www.google.com/www.soescola.com

No dia seguinte, o tempo estava agradável e o sol brilhou forte sobre as folhas verdes das bardanas; então, a mãe pata levou sua ninhada para a água e saltou sobre ela causando respingos. “Quack, quack”, gritou ela, e, um após o outro, os patinhos pularam.

A água fechou-se sobre suas cabeças, mas eles voltaram a subir em um instante e nadaram lindamente com as pernas remando sob eles o mais facilmente possível. O Patinho Feio também estava na água nadando com eles.

“Oh”, disse a mãe, “isso não é um peru; quão bem ele usa as pernas, e quão ereto ele se mantém! Ele é meu próprio filho e, afinal, não é tão feio, se você olhar bem para ele. Quack, quack! Venham comigo agora, vou levá-los à grande sociedade e apresentá-los no pátio da fazenda, mas vocês devem ficar perto de mim, ou poderão ser pisados; e, acima de tudo, cuidado com o gato!”.

Quando chegaram ao pátio, havia uma grande agitação; duas famílias brigavam pela cabeça de uma enguia, que afinal foi carregada pelo gato. “Vejam, crianças, é assim que o mundo funciona”, disse a mamãe pata, amolando o bico, pois ela própria teria gostado da cabeça da enguia. “Venham, agora! Usem as pernas e deixe-me ver como vocês podem se comportar bem. Vocês devem inclinar a cabeça de um modo gentil diante daquela velha pata ali. Ela é a mais bem nascida de todos eles, e tem sangue espanhol, portanto, está bem de vida. Vocês não veem que ela tem uma bandeira vermelha amarrada em uma de suas pernas? Isso é algo muito grandioso, e uma grande honra para um pato; demonstra que todos estão ansiosos por não lhe perder, pois ela pode ser reconhecida tanto pelos homens como pelos animais. Ora, vamos, não virem os dedos dos pés; um patinho bem-educado abre bem os pés, assim como o pai e a mãe, desta forma. Agora, dobrem o pescoço e digam “quack”.

Os patinhos obedeceram, mas o outro pato ficou olhando e, então, um deles voou e mordeu-o no pescoço.

“Deixe-o em paz”, disse a mãe; “ele não está causando nenhum dano!”

“Sim, mas ele é muito grande e feio”, disse o pato, rancoroso, “portanto, deve ser expulso!”

“As outras são crianças muito bonitas”, disse a velha patinha, com o trapo na perna. “Todas, menos aquela. Eu gostaria que sua mãe pudesse melhorá-lo um pouco.”

“Isso é impossível, Vossa Graça”, respondeu a mãe. “Ele não é bonito, mas tem uma disposição muito boa e nada tão bem ou até melhor que os outros. Acho que ele vai crescer bonito, e talvez seja menor. Ele permaneceu muito tempo no ovo, por isso, sua figura não está devidamente formada.” Então, ela acariciou seu pescoço e alisou suas penas, dizendo: “É um pato, portanto, não tem tantas consequências. Acho que ele vai crescer forte e capaz de cuidar de si mesmo!”.

“Os outros patinhos são graciosos o suficiente”, disse a velha pata. “Agora, sinta-se em casa e, se conseguir encontrar a cabeça de uma enguia, pode trazê-la para mim.”

Então, eles se acomodaram, mas o pobre patinho, que tinha saído da casca por último e parecia tão feio, foi mordido, empurrado e ridicularizado não só pelos patos, mas por todas as aves. “Ele é muito grande!”, todos diziam, e o galo, que havia nascido no mundo com esporas e se imaginava realmente um imperador, inflou-se como um navio a vela a todo vapor, voou em direção ao patinho e ficou com a cabeça muito vermelha, de cólera, de modo que o coitadinho não soube para onde ir e ficou bastante infeliz porque era muito feio e todo o quintal ria dele. E assim foi, dia após dia, até que ficou pior e pior. O pobre patinho era expulso por todos; até mesmo seus irmãos e irmãs eram rudes com ele e diziam [algo como] “Ah, sua criatura feia, gostaria que o gato pegasse você!”. Então, sua mãe passou a dizer que desejava que ele nunca tivesse nascido. Os patos o bicavam, as galinhas batiam nele e a menina que alimentava as aves o chutava com os pés. Por fim, ele fugiu, assustando os passarinhos na cerca viva enquanto voava sobre as estacas.

Figura 3. Fonte: https://www.google.com/educacaoemproducao.blogspot.com

“Eles têm medo de mim porque sou feio”, ele disse para si mesmo. Então ele fechou os olhos e voou para ainda mais longe, até que saiu em uma grande charneca, habitada por patos selvagens. Ali ele permaneceu a noite toda, sentindo-se muito cansado e triste.

De manhã, quando os patos selvagens se ergueram no ar, eles olharam para seu novo camarada. “Que tipo de pato é você?”, todos disseram, aproximando-se dele.

Ele curvou-se em direção a eles e foi o mais bem-educado que pôde, mas não respondeu à pergunta. “Você é extremamente feio!”, disseram os patos selvagens. “Mas isso não importa, se você não quiser se casar com ninguém de nossa família.”

Coitado! Ele não pensava em casamento; tudo o que ele queria era permissão para deitar-se entre os juncos e beber um pouco de água da charneca. Dois dias depois de ele ter chegado à charneca, vieram dois gansos selvagens, ou melhor, uns gansinhos, pois tinham saído do ovo havia pouco tempo, e eram muito atrevidos. “Escute, amigo”, disse um deles ao patinho, “tu és tão feio que gostamos muito de ti. Você irá conosco e se tornará uma ave migratória? Não muito longe daqui, há outra charneca, onde existem

alguns gansos bem selvagens, todos solteiros. É uma chance para você conseguir uma esposa. Você pode ter sorte, por mais feio que seja.”

“Poop, pop”, soou no ar, e os dois gansos selvagens caíram mortos entre os juncos, e a água ficou tingida de sangue. “Poop, pop, ecoou por toda a distância, e bandos inteiros de gansos selvagens se ergueram dos juncos. O som vinha de todas as direções, pois os esportistas cercavam a charneca, e alguns até estavam sentados em galhos de árvores, olhando fixamente para os juncos. A fumaça azul das espingardas ergueu-se como nuvens sobre as árvores escuras, e, à medida que flutuava na água, vários cães de caça saltavam entre os juncos, que se curvavam sob eles aonde quer que fossem. Como aterrorizaram o pobre patinho! Ele virou a cabeça para escondê-la sob a asa, e no mesmo instante um cachorro grande e terrível passou bem perto dele. Suas mandíbulas estavam abertas, sua língua pendia da boca, e seus olhos brilhavam de modo assustador. Ele aproximou o nariz bem perto do patinho, mostrando seus dentes afiados, e então “splash, splash”, ele entrou na água sem tocá-lo. “Oh”, suspirou o patinho, “como sou grato por ser tão feio; nem mesmo um cachorro me morde!”. E, assim, ele ficou imóvel, enquanto o tiro passou entre os juncos e os sacudiu; então, arma após arma foi disparada sobre ele. Já era tarde quando tudo ficou silencioso, mas mesmo assim o pobre jovem não se atreveu a se mover. Ele esperou em silêncio por várias horas e, então, depois de olhar cuidadosamente ao seu redor, saiu apressado da charneca o mais rápido que pôde. Ele correu pelo campo e pela campina até que uma tempestade começou, e ele mal conseguia lutar contra ela. Ao anoitecer, ele chegou a uma casinha simples, que parecia prestes a cair, e só ficou em pé porque não conseguia decidir de que lado cair primeiro. A tempestade continuou tão violenta que o patinho não pôde ir mais longe; sentou-se ao lado da cabana e notou que a porta não estava bem fechada, porque uma das dobradiças cedeu. Havia, portanto, uma abertura estreita próxima ao fundo, grande o suficiente para ele passar, o que ele fez muito silenciosamente e, então, conseguiu um abrigo para a noite. Uma mulher, um gato e uma galinha viviam nessa cabana. O gato, a quem a patroa chamava de “meu filhinho”, era o grande favorito; ele podia erguer as costas e ronronar, e poderia até mesmo lançar faíscas de seu pelo se ele fosse acariciado da maneira errada. A galinha tinha pernas muito curtas, então, ela foi chamada de “Chickie pernas curtas”. Ela botava bons ovos, e sua dona a amava como se ela fosse sua própria filha.

De manhã, o estranho visitante foi descoberto, e o gato começou a ronronar e a galinha a cacarejar.

Figura 4. Fonte: https://www.google.com/www.paraeducar.com.br

“Qual é a causa desse barulho?”, disse a velha, olhando ao redor da sala, mas sua visão não era muito boa; portanto, quando viu o patinho, ela pensou que fosse um pato gordo que havia saído de casa. “Oh, que prêmio!”, ela exclamou. “Espero que não seja um pato, pois assim terei alguns ovos de pata. Devo esperar para ver.”

Assim, o patinho foi autorizado a permanecer em observação por três semanas, porém não houve ovos. Ora, o gato era o dono da casa, e a galinha, a dona, e eles sempre diziam “Nós e o mundo!”, pois acreditavam ser a metade do mundo, e a melhor metade também. O patinho pensou que outras pessoas poderiam ter uma opinião diferente sobre o assunto, mas a galinha não deu ouvidos a essas dúvidas.

“Você pode botar ovos?”, ela perguntou. “Não.” “Então, tenha a bondade de segurar sua língua.” “Você pode levantar as costas, ou ronronar, ou lançar faíscas?”, disse o gato Tom. “Não.” “Então, você não tem o direito de expressar uma opinião quando pessoas sensatas estão falando!” Sendo assim, o patinho sentou-se em um canto sentindo-se muito desanimado, até que o sol e o ar fresco entraram na sala pela porta aberta, e então ele começou a sentir uma vontade muito grande de nadar na água, mas não conseguiu ajuda contando para a galinha.

“Que ideia absurda!”, disse a galinha. “Você não tem mais nada para fazer, por isso você tem fantasias tolas. Se você pudesse ronronar ou botar ovos, elas iriam desaparecer.”

“Mas é tão delicioso nadar na água”, disse o Patinho, “e tão revigorante senti-la fechando sobre a sua cabeça, enquanto você mergulha até o fundo.”

“Delicioso, de fato!”, disse a galinha. “Porque você deve estar louco! Pergunte ao gato, ele é o animal mais esperto que conheço, pergunte a ele se gostaria de nadar na água, ou de mergulhar nela, pois eu não vou dar minha opinião! Pergunte à nossa senhora, a velha... Não há ninguém no mundo mais inteligente que ela. Você acha que ela gostaria de nadar ou de deixar a água fechar sobre sua cabeça?”

“Você não me entende”, disse o Patinho.

“Nós não entendemos você? Eu me pergunto: quem pode entender você? Você se considera mais inteligente do que o gato ou a velha? Não direi nada sobre mim mesma. Não imagine essas bobagens, criança, e agradeça a sua sorte por ter sido recebido aqui.

Você não está em uma sala quente e em uma sociedade com a qual pode aprender algo? No entanto, você é um tagarela, e sua companhia não é muito agradável.”

“Acredite em mim, falo apenas para o seu bem. Posso contar verdades desagradáveis, mas isso é uma prova da minha amizade. Eu lhe aconselho, portanto, a botar ovos e aprender a ronronar o mais rápido possível”, disse o gato.

“Acho que devo sair pelo mundo novamente”, disse o Patinho.

“Sim, faça isso”, disse a galinha.

Figura 5. Fonte: https://www.google.com/br.pinterest.com

Então, o Patinho saiu da cabana e logo encontrou um lago onde poderia nadar e mergulhar, mas foi evitado por todos os outros animais, por causa de sua aparência feia. O outono chegou, e as folhas da floresta ficaram laranja e douradas. Então, à medida que o inverno se aproximava, o vento as apanhou enquanto caíam e as girou no ar frio. As nuvens pesadas, com granizo e flocos de neve, pairavam baixas no céu, e o corvo estava sobre as samambaias gritando “Croak, croak.”. Olhar para ele fez o patinho estremecer de frio. Tudo isso foi muito triste para o pobrezinho. Então, certa noite, assim que o sol se pôs entre as nuvens radiantes, um grande bando de lindos pássaros saiu dos arbustos. O patinho nunca tinha visto nenhum bando igual antes. Eles eram cisnes, e curvavam seus pescoços graciosos enquanto sua plumagem macia revelava uma brancura deslumbrante. Eles proferiam um grito singular quando abriam as asas gloriosas e voavam para longe dessas regiões frias, em direção a países mais quentes, do outro lado do mar. Enquanto eles subiam cada vez mais alto no ar, o Patinho Feio teve uma sensação bastante estranha ao observá-los. Ele rodopiou na água como uma roda, esticou o pescoço na direção deles e emitiu um grito tão estranho que ele mesmo se assustou. Será que ele poderia esquecer aqueles pássaros lindos e felizes? Quando finalmente eles sumiram de sua vista, ele mergulhou na água e se levantou, quase fora de si de empolgação. Ele não sabia o nome desses pássaros, nem para onde haviam voado, mas sentia algo por eles como nunca sentira por qualquer outro pássaro no mundo. Ele não tinha inveja dessas lindas criaturas, mas queria ser tão adorável quanto elas. Pobre criatura feia... com que alegria ele teria vivido até mesmo com os patos se eles apenas o encorajassem.

Figura 6. Fonte: literaturademulherzinha.com.br

O inverno foi ficando cada vez mais frio; então, ele foi obrigado a nadar na água para evitar que congelasse, mas toda noite o espaço em que nadava ficava cada vez menor. Por fim, congelou tanto que o gelo na água estalou enquanto ele se movia, e o patinho teve de remar com as pernas o melhor que pôde para evitar que o espaço se fechasse. Ele finalmente sentiu-se exausto e ficou imóvel e indefeso, congelado no meio do gelo.

Cedo, pela manhã, um camponês que passava percebeu o que havia acontecido. Ele quebrou o gelo em pedaços com seu tamanco de madeira e carregou o patinho para a casa em que morava com sua esposa. O calor reanimou a pobre criaturinha, mas, quando as crianças tentaram brincar com ele, o patinho pensou que lhe fariam mal; então, ele estremeceu de terror, esvoaçou em direção à vasilha de leite e espalhou o leite pelo cômodo. Nesse momento, a mulher bateu palmas, o que o assustou ainda mais. Ele voou primeiro para o barril de manteiga, depois para a tina de farinha e saiu novamente. Em que condição ele estava! A mulher gritou e bateu nele com a tenaz; as crianças riram, gritaram e tropeçaram umas nas outras, em seus esforços em prol de pegá-lo; mas felizmente ele escapou. A porta estava aberta; a pobre criatura conseguiu fugir por entre os arbustos e deitar-se exausta na neve recém-caída.

Seria muito triste se eu contasse todas as misérias e privações que o pobre patinho suportou durante o inverno rigoroso; mas, quando este passou, ele se viu deitado certa manhã em uma charneca, entre os juncos. Ele sentiu o sol quente brilhar, ouviu o canto da cotovia e viu que, ao redor, havia uma bela primavera. Então, o jovem pássaro sentiu que suas asas eram fortes enquanto as batia contra os lados do corpo e se erguia no ar. Elas o carregaram para a frente até que ele chegou a um grande jardim, antes que entendesse bem o que havia acontecido. As macieiras estavam em plena floração, e os perfumados sabugueiros dobraram seus longos galhos verdes até o riacho que serpenteava em volta de um gramado liso. Tudo parecia lindo ao frescor do início da primavera. De um matagal próximo vieram três lindos cisnes brancos, farfalhando suas penas e nadando suavemente sobre a água lisa. O patinho lembrou-se dos lindos pássaros e se sentiu mais estranhamente infeliz do que nunca.

“Vou voar até aqueles pássaros reais”, exclamou, “e eles vão me matar, porque sou muito feio e ouso me aproximar deles, mas não importa! É melhor ser morto por eles

do que bicado pelos patos, espancado pelas galinhas, empurrado pela donzela que alimenta as aves, ou morrer de fome no inverno.”

Então ele voou até a água e nadou em direção aos lindos cisnes. No momento em que avistaram o estranho, os cisnes correram ao encontro dele com as asas estendidas.

“Mate-me!”, disse a pobre ave, e então abaixou sua cabeça em direção à superfície da água e esperou a morte.

Mas o que ele viu no riacho claro, abaixo? Sua própria imagem! Não mais uma ave escura e cinza, feia e desagradável de se olhar, mas um cisne gracioso e belo. Nascer no ninho de um pato, em um pátio de fazenda, não tem importância para uma ave se ela nascer de um ovo de cisne. Ele agora se sentia feliz por ter sofrido tristezas e enfrentado problemas, porque isso lhe permitiu desfrutar muito melhor de todo o prazer e de toda a felicidade ao seu redor, pois os grandes cisnes nadaram em volta do recém-chegado e acariciaram seu pescoço com seus bicos, como uma saudação.

Logo depois, entraram no jardim algumas crianças pequenas que jogaram pão e bolo na água e disseram: “O novo é o mais bonito de todos! Ele é tão jovem e formoso!”. E os velhos cisnes inclinaram a cabeça diante dele.

Figura 7. Fonte: youtube.com

Então, ele se sentiu bastante envergonhado e escondeu a cabeça sob a asa; pois ele não sabia o que fazer, ele estava tão feliz, mas nem um pouco orgulhoso. Ele havia sido perseguido e desprezado por sua feiura, e agora os ouvia dizer que ele era o mais bonito de todos os pássaros. Até mesmo o sabugueiro curvou-se na água diante dele, e o sol brilhou quente e forte. Então, ele farfalhou suas penas, curvou seu pescoço esguio e gritou com alegria, do fundo de seu coração: “Eu nunca sonhei com uma felicidade como esta enquanto eu era um patinho feio!”.

Figura 8. Fonte: Ilustração do conto original

ANÁLISE DO TRABALHO

Leitura Simbólica

Como nos mostra a história, tudo se passa em meio rural, em uma casa de fazenda perto de um riacho, portanto, junto à natureza exuberante, a mãe pata está só, cansada e impaciente de ficar chocando seus ovos.

Ela não havia percebido que junto aos seus ovos havia também um ovo bem maior, que demoraria mais tempo para se partir.

Por alguma razão que escapa à compreensão do ego, assim aconteceu: surgiu em seu ninho um ovo que não era seu, e que foi chocado por ela até que se partiu e de dentro surgiu um patinho nada parecido com os outros; ele era grande e feio.

Para viver dentro de um ovo, um útero, há um tempo determinado, um limite. Se por um lado o ovo representa todas as possibilidades de um desenvolvimento futuro, por outro, caso passe do tempo, as possibilidades podem não existir.

O ovo nos remete à ideia de semente, de renascimento. Em muitas culturas, o ovo, além de carregar em seu simbolismo o germe de todo o início e suas diferenciações, representa também a renovação periódica da natureza. Segundo o Dicionário de Símbolos, de Chevalier e Gheerbrant(4) (p. 273): “[...] o ovo cósmico e primordial é uno, mas encerra ao mesmo tempo o céu e a terra, as águas inferiores e as águas superiores; na sua totalidade única, comporta todas as múltiplas virtualidades.

Essa amplificação simbólica nos mostra que o ovo traz em seu germe todo o potencial a ser desenvolvido.

Assim, os patinhos se desenvolveriam como patos que eram, mas o Patinho Feio teria de buscar seu caminho diferente dos irmãos, já que o seu ovo carregava o germe de um cisne.

No conto, a mãe pata foi incentivada pela amiga a abandonar o maior ovo, pois este estava demorando a se partir. Ela não o abandonou. Apesar do cansaço e dos queixumes pela ausência do pato pai, ou do conselho da amiga, nada disso demoveu a

mãe pata de continuar chocando o último ovo; provavelmente porque ela estava toda envolvida por um dinamismo de consciência materno. Neste momento, nada a afastaria de sua função materna.

Figura 9. Fonte: slideplayer.com.br

Esta decisão da mãe pata traz a reflexão de que ela estava mobilizada pelo arquétipo da Grande Mãe em sua polaridade positiva, ou seja, que toma para si e acolhe, do nascimento e da concepção, e isso proporcionou o nascimento daquele ser contido naquele ovo.

A mãe pata fez a escolha pela polaridade positiva que, segundo Jung(5), é: “[...] a mágica da autoridade do feminino, daquele que é bondoso, cuida e sustenta, daquele que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento, do nascimento” (§158).

Sendo assim, a mãe pata decidiu que ficaria no ninho mais um tempo, até que o último ovo rachasse; sendo assim, o processo de individuação do Patinho Feio ocorreu no momento em que o ovo se partiu e ele nasceu.

Stein(6), ao definir as cinco etapas da consciência, comenta que “Jung considerava que este processo se daria a partir da segunda metade da vida” (p.165).

Von Franz(7) afirma que para que ocorra o processo de individuação, é necessário construir-se e desenvolver-se quanto a nossa estruturação para depois sermos capazes de continuar de forma mais robusta esse processo. Deve haver uma estruturação egoica, capaz de intermediar com instâncias maiores todas essas questões; é preciso haver o confronto com a sombra, com a anima e o animus e com os complexos, integrando consciente e inconsciente. De acordo com a autora, ter consciência de si é fundamental para essa jornada. É o ego o norteador desse processo, auxiliado pelo herói, sem o qual não haveria a realização e o desenvolvimento da personalidade.

Por meio da ampliação da consciência é possível transformar-se e fazer a diferença no todo, no coletivo; contudo, é imprescindível que o ego ouça o Self, núcleo organizador de toda a psique, que nos comanda dando a direção.

Para Von Franz(7), durante a caminhada é importante haver o despojar-se daquilo que se pensa que é, fazendo-se uma imersão na introspecção, despindo-se da persona defensiva e lembrando-se de que não depende apenas da “vontade consciente de mudança como se o ego tivesse o controle da situação, e sim porque é algo involuntário, natural”, é determinante (p. 211-212).

O caminho da individuação se refere a tornar-se um ser individual e único, o que é diferente de individualismo ou egoísmo. Trata-se do entendimento das nossas particularidades, que é diverso das particularidades dos outros seres humanos, ou seja, cada ser tem uma apreensão da realidade e reage de forma particular a cada uma delas.

É importante ressaltar que fazemos parte do coletivo, mas neste processo é necessário um afastamento momentâneo para poder retornar a ele mais consciente das próprias ações e daquilo que se é verdadeiramente enquanto indivíduos únicos, favorecendo, assim, uma relação mais plena e profunda.

Jung (8) considera que identificar-se com o coletivo para simplesmente fazer parte é perder-se da própria essência. O coletivo atende a um contexto mais social, como, por exemplo, às regras ou às leis que regem uma sociedade; portanto, atende a todos, e não a uma única pessoa.

O Patinho Feio passou por esse processo à medida que tentou se identificar com o coletivo, com os outros patos. Ele tentava ser agradável e educado; porém, não conseguia agradar. Sempre os outros patos, galinhas e gatos o subestimavam e o colocavam numa condição inferior; todos da comunidade se desfaziam dele. Ele se esforçava por fazer parte daquela coletividade, queria ser aceito por todos; mas não conseguia, não havia se atentado de sua natureza, estava inconsciente de si e de quem era de fato. Enquanto estava entre os patos, esforçava-se por realizar algo natural em qualquer ser vivo, humano ou animal, o sentimento de pertencimento; no entanto ele fracassou em todas as tentativas, não percebia seu valor nem sua força, pois estes estavam sombrios, inconscientes dentro dele.

Figura 10. Fonte: https://www.google.com/www.slideshare.net

Jung denominou esta parte oculta ou desconhecida da personalidade de sombra. Conforme explica Von Franz(7): “A sombra não é o todo da personalidade, ela representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego” (p. 222).

Ele recusou o tempo todo sua condição de cisne porque, para fazer parte de sua comunidade e ser aceito foi preciso identificar-se com os patos, integrando na consciência esta condição, rejeitando, inconscientemente, a condição de cisne.

Segundo Stein(6): “O que a consciência do ego rejeita torna-se sombra; o que ela positivamente aceita, aquilo com que se identifica e absorve em si, torna-se parte integral de si mesma e da persona.” (p. 100). Ele vestiu-se de penas de pato para conviver dentro de sua comunidade, utilizando-se desta persona, nas palavras do referido autor, “recusando a sua essência, ele se tornou um ser incompleto” (p. 102).

Os aspectos sombrios do Patinho, além de deixá-lo incompleto e triste, lhe custaram muitas dificuldades pelo caminho; todavia, o impulsionaram, porque havia também dentro dele um ímpeto para a vida.

Com relação à sombra, podemos dizer que:

Se a figura da sombra contém forças vitais e positivas, devemos assimilá-las na nossa experiência ativa, e não reprimi-las. Cabe ao ego renunciar ao seu orgulho e vaidade para viver plenamente o que parece sombrio e negativo, mas que na realidade pode não o ser. Tudo isso exige, às vezes, um sacrifício tão heroico quanto o de dominar uma paixão – mas em sentido oposto (Von Fraz, 2008, p. 230).

Para a Psicologia Analítica, mitologia e os ritos sacrificiais em diferentes culturas, sacrifício é um conceito diferente do que comumente se considera na linguagem popular. Quando falamos em sacrifício no contexto deste trabalho aqui considerado, queremos dizer abrir mão, despedir-se do mundo infantil, do que está conhecido para se lançar ao novo, dando lugar ao desenvolvimento e amadurecimento. É evidente que esse passo não seja dado com muito sofrimento e dor.

Foi exatamente neste momento de dor que o protagonista deste conto, movido por seu ímpeto pela a vida, juntamente com o herói dentro de si, que ele foi capaz de transpor o seu caminho voando para longe, renunciando aos vínculos da infância.

Nasceu um cisne entre os patos, mas esse fato não o impediu de, ao fugir de todo sofrimento trazido pela rejeição, começar a trilhar seu caminho de forma solitária. É assim que determina o caminho profundo que proporciona o diálogo entre o ego e o Self. A realização do processo de individuação é sempre solitária e particular de cada ser humano; porém, não é necessário se isolar, mas sim relacionar-se cada um à sua maneira. Só é possível individuar-se na relação com o outro.

Em todo o seu percurso, o patinho se relacionou com outros patos, galinhas e gatos até encontrar com seu grupo. Esses relacionamentos não se revelaram bem-sucedidos; ao contrário, contribuíram para que o Patinho Feio fosse alimentando seus complexos e autoestima baixa. Já estava constelado, instalado em seu ser o complexo de inferioridade absorvido do seu convívio e ambiente coletivo. As suas reações e atitudes no decorrer do seu caminho já eram reflexos do seu complexo.

Segundo Jung(2): “A expressão ‘está constelado’, indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida” (§198), não podendo ser controlada apenas pela vontade porque a energia do complexo é própria, existindo uma autonomia como se fosse uma entidade independente. Jung(2) considera que: “são os nossos complexos que nos têm.” (§200). E no caso do patinho o complexo já o tinha.

A atitude do Patinho mostra que quando um complexo está ativo, conforme explica Jung(2), pode trazer dificuldades à vida das pessoas gerando perturbações ou até mesmo comportamentos adversos prejudicando o discernimento e trazendo consequências desastrosas à vida de qualquer ser.

O Patinho tomado pela energia do complexo e sentimento de menos valia agradeceu por ser tão feio, atribuindo à sua feiura o fato dos cães de caça não se importarem com ele pois, talvez instintivamente o cão tenha percebido que se tratava de um cisne e não de um pato. Ainda assim o patinho permaneceu no local por muito tempo até sentir-se seguro a caminhar.

Ele sofreu todos os tipos de humilhação e precisou lidar com o sentimento de feiura e a rejeição da mãe pata que desiste dele e não luta por ele ou o protege. Que mãe é essa que não luta nem protege até o fim a sua cria? Talvez ela sentisse desde o início que ele não fazia parte de sua ninhada.

O quão triste foi para o patinho ouvir sua mãe lhe dizer que gostaria que ele nunca tivesse nascido. Neste momento, é provável que o arquétipo materno negativo tenha se sobreposto e invadida por esse sentimento negativo, a mãe se exerceu como mãe-pata terrível. Jung(5) considera que a polaridade negativa do arquétipo materno, é a mãe “bruxa, terrível, maldosa e devoradora” (§158).

Figura 11. Fonte: Vetor Premium br.freepik.com

Segundo Jung(5), a mãe é o primeiro contato do filho com o feminino, com o aconchego, o amor incondicional, com o colo nutridor e acolhedor. No momento em que a mãe o rejeita de forma tão cruel, provavelmente surge em sua psique a sensação de menos valia acompanhada de um complexo materno negativo.

É possível que a insegurança do Patinho Feio e o fato de não se defender talvez estivessem relacionados à influência desse complexo negativo associado ao não

relacionamento ou à experiência do seu valor e de sua importância, uma vez que todos o maltratavam, o bicavam, chutavam e ridicularizavam quanto a sua aparência.

Apesar de ter passado por momentos tão negativos, o Patinho Feio foi capaz de dominar a negatividade e seguir em frente; apesar de ainda não ter consciência de sua força interna que o impulsionou a seguir, porém, ele não poderia mais ficar naquela comunidade. Imbuído então da presença do seu herói interno, o Patinho partiu, procurando uma outra vida, longe daquele lugar.

Figura 12. Fonte: Hachi Ko - Patinho Feio universodahachi.artstation.com

Neste momento o Patinho Feio percebeu que “aquela situação já não lhe cabia, era necessário transpor para outros caminhos”, palavras de Campbell(9) (p. 31).

Voou para bem longe assustando os passarinhos que se encontravam na cerca e isso fez com que o patinho pensasse que eles tinham medo dele por ser tão feio.

O Patinho Feio foi embora; algo dentro dele foi despertado, ele não hesitou, saiu daquela comunidade. É provável que, de acordo com a jornada do herói, ele tenha ouvido o chamado para seu processo de desenvolvimento, o que se denomina individuação. Ele não poderia mais ficar. Apesar de saber que na comunidade onde vivia tinha a mãe, os irmãos, vizinhos, outros patos e animais, ele escolheu buscar um outro caminho.

A recusa à convocação converte a aventura em sua contrapartida negativa. Aprisionado pelo tédio, pelo trabalho duro ou pela ‘cultura’, o sujeito perde o poder da ação afirmativa dotada de significado e se transforma numa vítima a ser salva. Seu mundo florescente torna-se um deserto cheio de pedras e sua vida dá a impressão de falta de sentido (CAMPBELL, 2002, p. 35).

Felizmente, o Patinho Feio não ficou cativo do aprisionamento no inconsciente, na mãe bruxa arquetípica, no poder da vitimização e assim segue seu caminho sem ter certeza do que lhe aconteceria. Confiou e partiu, acreditou em algo maior e não ficando preso aos comandos, sombrios, racionais ou egóicos e sim em algo que o auxiliaria em sua caminhada.

Campbell(9) afirma: “Tendo respondido ao seu próprio chamado, e prosseguindo corajosamente conforme o desenrolar das consequências, o herói encontra todas as forças do inconsciente do seu lado. Mãe Natureza, ela própria dá apoio à prodigiosa tarefa” (p. 40).

Voou para bem longe, até chegar a uma charneca habitada por patos selvagens. Passou dois dias na charneca encontrando-se com dois gansinhos que o acham feio; todavia, o aceitam e até o convidam a partir com eles. O patinho foi encontrando outros patos e gansos e se relacionando ao longo de sua jornada; quando menos esperavam começaram a atirar nos gansos, e dois deles caíram mortos. O Patinho Feio escapou por pouco, ficou quieto até que cessassem os tiros, mas não se atreveu a sair de onde estava escondido até ter certeza de que não correria mais risco.

Neste momento, de tanta apreensão, talvez tenha sido a passagem do primeiro limiar da jornada do patinho, ele enfrenta riscos e perigo enormes, indefeso e sem proteção de qualquer membro de sua comunidade, o que o fez continuar firme em seu propósito.

A partir de agora, não poderia mais retroceder. E mais uma vez o Patinho Feio seguiu o seu caminho: correu pelo campo e sendo surpreendido por uma tempestade que mal conseguia lutar contra ela. Chegou a uma casinha conseguindo entrar e passou a noite lá.

No dia seguinte, foi descoberto pela galinha e pelo gato, até que a velha senhora, dona da casa, permitiu que ele ficasse. Foi o tempo todo testado pela galinha e pelo gato. A galinha se fingia de amiga e conselheira, mas não era, o que ela queria é que o patinho se sentisse mais uma vez inadequado, incompetente e sem qualidades. Qualquer opinião que emitisse era desconsiderado como se não tivesse nada a contribuir; sentou em um canto muito triste até que sentiu o ar fresco e o sol entrando pela porta, o que lhe deu vontade de nadar na água.

A galinha achou essa ideia absurda e tentou provar que o patinho estava errado e que pensava em tolices; mais uma vez, ele não foi compreendido, ouvido e valorizado nas suas vontades ou desejos.

A galinha, o gato e todos os outros não poderiam alcançar o que estava sendo falado pelo patinho; eles não tinham consciência da importância que era nadar e mergulhar na água e o prazer que isso proporcionava ao Patinho Feio. Jamais corresponderiam às necessidades um do outro porque tinham essências diferentes.

A velha senhora autoriza o patinho a ficar na casa por algum tempo, desde que trouxesse bons resultados, que fosse uma pata e botasse ovos, assim, ela sempre teria ovos de pata; fato este que jamais aconteceria. Não poderia fazê-lo do ponto de vista orgânico, já que patos não botam ovos, e, com certeza, mais tarde ele seria escorraçado pela velha senhora, pois não estaria a serviço dela. Nesta etapa de sua jornada, gato e a galinha podem sugerir um momento perigoso de encontro com a morte, pois ambos os símbolos

em alguns rituais têm o significado de comunicação com a morte. O risco seria, de novo, ficar paralisado na busca de si mesmo. O Patinho Feio percebeu, que se ficasse ali seria a própria morte simbólica, pois estaria paralisado naquilo que não era, não se permitindo apropriar-se de si, da sua essência. E mais uma vez ele segue a sua jornada, pois, sente que ali não conseguiria manifestar sua essência; era exigido por algo que não era.

Sabiamente o patinho resolve ir embora e retornar a sua jornada.

Ao sair da cabana encontrou água, onde poderia nadar e mergulhar. Novamente, foi rejeitado pelos animais. Chega o outono, e o inverno se aproximava, neste momento deparou-se com o corvo e só de olhar para ele fez o patinho estremecer de frio. No decorrer de sua jornada, o desconhecido foi se apresentando muitas vezes como estranho e assustador.

Porém, “certa noite, ele avistou um bando de lindos pássaros que saíram dos arbustos. O Patinho nunca tinha visto nenhum igual antes. Eram cisnes, e curvavam seus pescoços graciosos. Eles proferiram um grito singular, enquanto abriam suas asas gloriosas e voavam para longe das regiões frias para países mais quentes, do outro lado do mar.”

Ao ver os pássaros sumirem, o “patinho feio sentiu uma sensação bastante estranha... Ele girou na água como uma roda, esticou o pescoço na direção deles e soltou um grito tão estranho que até ele mesmo se assustou” .... “mergulhou novamente na água e levantou quase fora de si de tanta empolgação.”

Havia de alguma forma, um sentimento por aqueles pássaros que o Patinho Feio não conseguiu entender. Não sentiu inveja deles, mas uma admiração enorme pela beleza que eles possuíam.

Neste momento é possível que Patinho Feio estivesse se aproximando de sua essência; porém, ainda não havia se conscientizado dela.

No entanto, muito ainda teria que enfrentar. E assim as noites foram ficando cada vez mais frias, o frio tornou-se mais intenso e o patinho precisou se haver com esta realidade. Enfrentando o frio, o Patinho Feio nadava para a água não congelar. Luta bastante, com todas as suas forças, porém não conseguiu, ficou congelado, preso no gelo. E mais uma vez foi salvo e levado a um novo lugar. E mais uma vez é colocado ao ritmo.

Foi salvo por um camponês que o retira do lago e o leva para a própria casa.

O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região. Ou talvez ele aqui descubra, pela primeira vez, que existe um poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre-humana (Campbell, 2002, p. 56-57).

Ele foi levado para a casa, para a esposa do camponês e quando as crianças quiseram brincar com ele o patinho pensou que lhe fariam mal porque tinha na memória todas as lembranças dos maus tratos pelos quais passara até então. Esvoaçou para a vasilha de leite, para o barril de manteiga e depois para a tina de farinha ficando numa situação deplorável. O pobrezinho acabou apanhando. Lá não conseguiu ficar e novamente partiu. Conseguiu fugir por entre os arbustos e deitar-se exausto na neve recém caída.

“Seria muito triste se eu contasse todas as misérias e privações as quais o pobre patinho suportou durante o inverno rigoroso; quando este passou, ele se viu deitado uma manhã em uma charneca entre os juncos. Ele sentiu o sol quente brilhar, ouviu o canto da cotovia e percebeu que ao redor se fazia uma bela primavera.”

A aventura última, quando todas as barreiras e os ogros foram vencidos, costuma ser representada com um casamento místico (hierógamos) da alma herói triunfante com a Rainha-Deusa do Mundo. Por outro lado, a lembrança da mãe má, ausente e inalcançável, contra quem se teme uma contra-agressão (Campbell, 2002, p. 62).

“Então o jovem pássaro sentiu que suas asas eram fortes enquanto as batia contra os lados do corpo e se erguia no ar. Ele se viu em um grande jardim, antes que soubesse bem como tinha acontecido. Tudo parecia lindo, no frescor da primavera. De um matagal próximo vieram três lindos cisnes brancos, farfalhando suas penas e nadando suavemente sobre a água lisa. O patinho lembrou-se dos lindos pássaros e se sentiu mais estranhamente infeliz do que nunca.”

Em seu percurso o patinho demonstrou atitudes heroicas passando pelas rejeições, enfrentando as suas fragilidades, mostrando a sua força e não se deixando se abater pelas dificuldades apresentadas no caminho. Precisou tomar a decisão de partir da fazenda onde nasceu, deixando seus “irmãos patos” e sua “mãe pata.”

Na minha leitura, essa foi a primeira atitude heroica do Patinho Feio, tomou para si a decisão de não mais se submeter ao desprezo, desvalorização e projeções de todos que o rodeavam no seu ambiente de convivência. Teve ato de vontade, não perguntou e tampouco disse que tomaria esta decisão, apenas seguiu o seu instinto. Ele decidiu, esta atitude só foi possível porque constelou-se o arquétipo do herói tão necessário para que o ego possa seguir adiante na sua jornada de enfrentamentos e encontro com o Self. No conto do Patinho Feio, podemos perceber as várias etapas que se apresentam quando se permite um mergulho profundo em direção ao desconhecido.

O herói está presente em todo ser humano desde o nascimento visto que é um arquétipo. Mobilizado, auxilia no enfrentamento da luta interna contra os medos e as

dores, a tristeza e o risco do retorno ao útero materno. E traz a possibilidade de colocarmos nossa energia a serviço da vida e do desenvolvimento da personalidade.

Assim, imbuído da coragem “emprestada” de seu herói arquetípico, o Patinho Feio consegue renunciar ao conhecido e se lança no caminho do desconhecido.

Figura 12. Fonte: https://www.google.com/juvepaz.wordpress.com

Muitas vezes, essas etapas vividas no processo de individuação são recheadas de muita tristeza e profundo sofrimento, mas são importantes momentos de aprendizado para seguir o próprio caminho cada vez mais fortalecido.

O patinho obedeceu a um chamado interior, foi guiado por uma instância superior (Self) e não hesitou seguindo em frente, impulsionado pela força do herói, apesar de tudo aquilo que foi encontrando no percurso, tiroteio, tempestade, frio. Foi assumindo todos os riscos sem saber onde chegaria.

O patinho mostrou-se forte e sabia que estava por conta própria e mais uma vez se rendeu mostrando-se consciente, reconhecendo os próprios limites quando decidiu não seguir adiante durante a tempestade, respeitou o cansaço e compreendeu que não era imortal. Não poderia continuar e assim respeitou os seus limites., colocando a nossa existência em risco. De acordo com Stein(10), pensar com a arrogância do ego que tudo podemos, desrespeitando os nossos limites é muito perigoso. É preciso prestar atenção naquilo que nos está sendo falado através do nosso corpo e da nossa psique; sendo assim, o patinho respeitou que não poderia enfrentar um evento da natureza que era a tempestade.

Novos enfrentamentos, novos desafios, novas vivências de morte sugiram em seu caminho. O processo de individuação está sempre apresentando as polaridades morte e renascimento para que possamos emergir renovados do mergulho profundo no escuro do nosso inconsciente, cada vez mais aproximando e facilitando o diálogo ego-Self.

Passado algum tempo, quando terminou a estação se viu deitado em uma charneca pela manhã, o sol brilhando e o canto da cotovia, a primavera havia chegado.

De acordo com a narrativa do conto o patinho sentiu-se bem e percebeu que suas asas eram fortes e podia voar. Ele voou até que se viu em um grande jardim. Tudo estava florescendo, o riacho era rodeado de um gramado liso. Tudo parecia lindo.

De um matagal o patinho avistou três lindos cisnes branco nadando sobre a água lisa.

Encorajou-se para voar até àquelas aves mesmo correndo o risco de não ser aceito, correria o risco apesar da sua vivência de ter sido maltratado pelos animais que havia encontrado em seu caminho.

“Voou até eles e pensou, “e eles vão me matar, porque sou muito feio e ouso me aproximar deles; mas não importa, é melhor ser morto por eles do que bicado pelos patos, espancado pelas galinhas, empurrado pela donzela que alimenta as aves, ou morrer de frio no inverno.” (conto)

“Mate-me”, disse a pobre ave, baixando a cabeça para a superfície da água e esperando a morte.”

A força que o Patinho tinha dentro dele o atraiu para a sua essência, fato esse, digno da atitude de um herói. O Patinho Feio não hesitou, ele simplesmente acreditou e foi, arriscou-se como o herói se arrisca, podendo perder a própria vida.

Mas o que ele viu no riacho claro abaixo? Sua própria imagem, não mais uma ave escura e cinza, feia e desagradável de se olhar, mas um cisne gracioso e belo.

A parte desconhecida e oculta da personalidade do Patinho Feio se revelou. Através da admiração pelas aves, do sentimento elevado e da alegria que sentia por elas o patinho chega a sua essência, faz um reconhecimento de si e constata que era um cisne e não um “Patinho Feio.”

Podemos dizer que o Patinho Feio não tinha consciência de que era um cisne, estava inconsciente dentro de si esta realidade. Ele representou um personagem através do social, havia nascido cisne em meio a patos. A representação desse personagem é explicada por Stein(6) como a persona. Em suas palavras, “a persona faz com que a interação social casual transcorra mais fácil, mais solta, e atenua os pontos mais ásperos que poderiam, em outras circunstâncias, causar constrangimento ou dificuldades sociais” (p .101).

Durante sua vivência na fazenda em que nasceu e também ao longo de sua caminhada, era muito difícil corresponder às expectativas dos animais ao seu redor. Como vestir a persona de um pato? Não era um deles, mas também não estava ciente de sua verdadeira identidade. A falta de poder se exibir enquanto cisne que era dificultou sua adaptação ao coletivo.

A persona é uma grande aliada no papel que representamos na sociedade, nosso compromisso com o coletivo. Sua adaptação, sua adequação ocorrem quando encontra os cisnes e é por eles acolhido. Fica assim representado quando: “Voou para a água indo em direção aos lindos cisnes. No momento em que avistaram o estranho, correram para encontra-lo com suas asas estendidas.”

Neste momento penso que o patinho acionou dentro de si a sua força e coragem, aspecto do masculino que é aquele que nos ajuda a ousar, tentar e ir para a vida.

“Mate-me, disse a pobre ave, e ele abaixou a sua cabeça para a superfície da água, e esperou a morte.” É como se o ego, nesta postura de humilhação, se rendesse ao Self.

Mas o que ele viu no riacho claro abaixo? Sua própria imagem; não mais uma ave escura e cinza, feia e desagradável de se olhar, mas um cisne gracioso e belo. Nascer no ninho de um pato, em um pátio de fazenda, não tem importância para uma ave, se ela nascer de um ovo de cisne. O lago reflete, como um espelho, sua verdadeira identidade.

Neste instante se supera de todas as suas provas, ele quer compartilhar o aprendizado não o deixando para trás. Sua joia está dentro de si, sua essência. Há uma integração do todo. Tem a recompensa pela luta travada.

Assim, foi que nesse momento mágico o Patinho Feio, depois de muitas agruras vislumbrou os seus iguais com os quais podia se identificar e experimentar o sentimento de pertencimento.

No grupo de cisnes teve a recepção calorosa que sempre desejou. A realização da sua jornada, seu processo de individuação que permitiu que ele se diferenciasse e fosse único, mostrou a todos que ele se tornou o cisne mais lindo do lago.

CONCLUSÃO

Ao fazer a leitura simbólica do conto do Patinho Feio, eu não poderia deixar de fora, para concluir este artigo, as etapas pelas quais o Patinho percorreu até encontrar-se.

O patinho nasceu em uma família de patos sendo cisne. Ao nascer, estava completamente identificado com a mãe pata. Vivia em um mundo limitado juntamente à sua mãe, irmãos e com sua comunidade, e para ele o mundo estava circunscrito a esta situação. A esta fase Jung denominou de participação mística que, de acordo com Stein(6) é quando o objeto não está indiferenciado e, portanto, está completamente misturado à mãe, aos irmãos e à família, não tendo consciência de quem de fato é. Ainda nesta fase há projeções que são direcionadas e introjeções recebidas dentro do grupo familiar.

À medida que vamos nos desenvolvendo, a diferenciação vai se estabelecendo, vamos nos tornando mais conscientes de nós e dos outros à nossa volta e percebendo diferenças que nos circundam. O mundo não se restringe mais a um pequeno espaço, e aquilo que ocorria apenas em um limite muito pequeno passa a acontecer dentro de um espaço mais amplo e passamos a fazer escolhas discriminando quais objetos são mais ou menos importantes para nós, idealizamos nossos pais, mães e tudo aquilo que está ao nosso redor como se fosse o máximo. Assim, o Patinho Feio nasceu e identificou-se com

a mãe e com os irmãos patos; após foi se percebendo diferente deles, foi observando seu espaço de convivência; contudo, por um bom tempo, ficou neste mundo. Recebeu todo tipo de projeção como se ele não fosse um ser digno de ocupar um espaço; sua beleza e essência estavam encobertas e sombrias. Neste sentido, encontrava-se completamente inconsciente, e isso lhe custou muito sofrimento pelo caminho. Já estavam estabelecidos os sentimentos de inferioridade e os complexos, os quais foram sendo formados no decorrer do seu desenvolvimento, e ele nunca conseguia se defender das agressões. Além disso, ligou-se a uma parte de sua mãe que, no âmbito dos arquétipos, foi a mãe bruxa e má, aquela que não o promovia nem o valorizava. Uma mãe que preferia que ele nunca tivesse nascido. De qualquer forma, o Patinho se ligou a esse aspecto de sua mãe; talvez trouxesse dentro dele algo inato que colaborou para essa escolha, não sabemos, esse fato é muito inconsciente; interessante é que essa ocorrência o ajudou em seu processo de individuação, não o paralisando.

Havia uma grande força dentro do Patinho que o impulsionou a seguir seu caminho longe de sua comunidade. Dentro dele havia a força do herói, que é a força que nos move e nos faz confrontar com a realidade que nos é apresentada. Neste momento é preciso fazer uma escolha, é o momento em que precisamos nos desvencilhar de antigos valores e procurar novos valores e significados para a nossa existência, porque o estabelecido não nos abastece mais. Romper com as normas, diferenciar-se, é muito difícil e exige muita coragem. E assim o Patinho Feio fez, ousou, foi buscar sua essência, largando a mãe, os irmãos e toda a comunidade sem saber o que encontraria. Acreditou que a própria Natureza lhe mostrasse a direção.

O Patinho Feio mergulhou em seu processo fazendo uma enorme busca, passando por situações dificílimas. Afastou-se do coletivo, o que para o processo de individuação é uma etapa extremamente importante; é solitário quanto aos confrontos, ao recolhimento das próprias projeções e da sombra, aspectos esses que o patinho também apresentava. Apesar de ser um processo solitário, não é isento de ajuda. Se confiarmos em uma instância superior e se não ficarmos aprisionados aos comandos do ego, a ajuda aparece. Este aspecto é muito bem colocado nos contos de fada. E isto se revelou no processo do Patinho Feio; ao se deparar com as dificuldades, sempre encontrava uma saída, e uma força que o fazia prosseguir; pois ele não recusava o seu chamado.

Em sua jornada, encontrou patos selvagens, gansos, o gato e a galinha. É possível que cada um desses símbolos representassem um aspecto do Patinho a ser desenvolvido e integrado. Podemos dizer que os patos selvagens e os gansos trazem aspectos de união e fidelidade-era desejável e importante para o nosso protagonista encontrar seu grupo e

com ele criar suas raízes. O gato, o lado observador e astuto que o patinho precisou desenvolver para lidar com os confrontos do caminho; a galinha traz o aspecto da morte e do renascimento pelo qual o Patinho passou por diversas vezes durante o processo de individuação. Já o ovo simboliza a vida e o desenvolvimento.

Todos esses símbolos foram aspectos importantes e valorosos para a individuação do patinho.

O patinho foi sendo confrontado pelo caminho; não encontrava espaço nem lugar para se estabelecer, até que se deparou com lindas aves. Ao avistá-las, ele se sentiu feliz, pois percebeu que estava muito próximo da chegada, do encontro com sua verdadeira identidade.

Foi quando o Patinho Feio se deparou com as aves da mesma espécie e se arriscou, indo nadar no lago. Ao mergulhar, se vê refletido na água e se reconhece como uma delas.

Na água, um símbolo representante do inconsciente, está guardada sua verdadeira identidade que até este instante se escondia na sombra; quando se enxerga através da água ele faz a integração desse aspecto que estava inconsciente à consciência. E assim, as aves o receberam, e ele pôde trazer para si a sua essência, assumindo o que ele realmente era: Um cisne!

REFERÊNCIAS

1. Machado AM. Contos de fadas de Perroult, Grimm, Andersen e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

2. Jung CG. A natureza da psique. Obras Completas, vol. 8/2. Petrópolis: Vozes, 1984.

3. Von Fraz ML. A individuação nos contos de fadas. São Paulo: Paulus, 1984.

4. Chevalier J.; Gheerbrant A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

5. Jung CG. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Obras Completas, vol. 9/1. Petrópolis: Vozes, 2000.

6. Stein M. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.

7. Von Fraz ML. O Processo de Individuação. In: Jung CG. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

8. Jung CG. O eu e o inconsciente. Obras Completas, vol. 7/2. Petrópolis: Vozes, 1987.

9. Campbell J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 2002.

10. Stein M. Jung e o caminho da individuação: uma introdução concisa. São Paulo: Cultrix, 2020.

Figura 13. Fonte: https://www.google.com/labedu.org.br

_____ 1A autora agradece a colaboração e as orientações da Dra. Reinalda Melo da Matta, professora convidada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro fundadora e Teaching Member do Instituro Brasileiro de Terapia do Sandplay (IBTS/ISST). Endereço para correspondência: Telefone: E-mail:

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