Artigo de Conclusão de Curso: O Pã Nosso de cada dia.

Considerações sobre a Mitologia da sombra e da sexualidade.

PA

RESUMO

Monteverde, R. O Pã Nosso de cada dia. Considerações sobre a Mitologia da sombra e da sexualidade.

Artigo (Especialização). Franca: Universidade de Franca, 2015.

A produção do presente estudo fora realizada a partir de um relato de caso clínico, que retrata a dinâmica da não aceitação da sombra em sua manifestação na sexualidade humana de uma pessoa vítima de Abuso Sexual. A par disso, foi-se desenvolvida uma amplificação simbólica do caso abordado, compreendendo e analisando o aspecto arquetípico- mitológico do deus grego Pã em sua dimensão luminosa e sombria.

Trata-se de um estudo em que adotamos como delineamento metodológico a modalidade de pesquisa Qualitativa Clínica, apoiada no quadro de orientação teórica e metodológica do procedimento Dialético. Fora empregado o exame de um Estudo de Caso delimitado e com contornos claramente definidos perante um caso clínico atendido em consultório particular entre junho de 2011 até dezembro de 2015. Na realização da análise do estudo de caso, utilizamos o conhecimento norteador da Psicologia Analítica, conduzindo-o ainda a um desdobramento a partir de materiais pertinentes à temática em questão como, por exemplo, a mitologia.

A analogia da manifestação sintomática e psicodinâmica da paciente, entrelaça-se de modo fecundo com o simbolismo e imagem arquetípica do deus Pã, preponderando, nessa relação, a negação e não aceitação desse mito em sua existência. Desse modo, brota-lhe constantemente a estagnação defensiva de símbolos desligados da consciência, tendo consequências, como: fantasias apavorantes, medo da loucura, fobia de animais pequenos e frequentes prejuízos nas relações interpessoais. 

No decorrer do processo analítico, o deus Pã apresenta-se como correspondente das expressões interiores de Glória (paciente). Os conflitos infantis, repressões e julgamentos bem como os abusos sexuais vividos, apresentam-se enquanto aspectos do feminino de Glória todo dissociado em sua psique. A junção gradativa deste feminino no interior de Glória, tal como Pan fizera com Syrinx, transformava a rigidez ideológica, moral e psíquica em oportunidade de escuta e contemplação de sua natureza unitária.

 

Palavras-chave: Psicologia Analítica, Sombra, Sexualidade, Mitologia, Transtornos Psiquiátricos.

 

INTRODUÇÃO

As palavras aqui germinadas são frutos de uma experiência profunda de desconforto quando me deparava com as acepções da dualidade Luz e Sombra. A dissonância interna de que o caráter divino devia ser sempre e constantemente alcançado ao passo que o diabólico excluído, gerava-me um mal-estar que só se abrandou quando me aproximei do universo da mitologia comparada de Joseph Campbell, que bem-aventurava a unidade dos opostos.

Os mitos descortinaram-me um novo horizonte e eram concebidos como um espaço sagrado onde a não dualidade vigorava. Pude apreender uma sublime convergência entre aquilo que em meu âmago era sabido, mas que ainda não era capaz de exprimir verbalmente e por via escrita. Em vista disso, a rejeição à sombra dava espaço ao fascínio por um mundo subterrâneo que gesta e habita o Ouro escondido, em sua extração há desconhecidos perigos e exige-se o sacrifício e a esperança. 

Curvando-me diante de minha própria escuridão subterrânea, notava perversidades que até então eram dignas de negações, racionalizações e projeções; constelava-se paulatinamente a indagação e imprecisão de meu dogma monista até o momento inquestionável. Sutilmente pude então de maneira impar apreender o que Dostoievski (1) chamou de “imundo e fétido subterrâneo”, onde me assemelhava ao seu rato  apuradamente consciente e que se via insultado, derrotado e ridicularizado, se afundando em sua fúria frígida, envenenada e, sobretudo infindável.

À medida que a restauração da óptica e tendência ao sumo bem se realizava, o olhar banhado de valor e respeito ao aspecto da sombra ia-se solidificando tanto através de meu próprio processo psicoterápico e vivencial, como da experiência clínica. 

O plantio da presente análise fora cultivado a partir de um relato de caso clínico consentido, que retrata a dinâmica da rejeição e da não aceitação da sombra em sua manifestação na sexualidade humana, observando as reverberações dessa desconexão com os complexos autônomos que ultrapassam o controle consciente. A par disso farei uma amplificação simbólica do caso abordado, compreendendo e analisando o aspecto arquetípico- mitológico do deus grego Pã em sua dimensão luminosa e sombria.

O intento da análise do deus grego Pã, refere-se ao fato de que tal mítica coincide (confunde-se) com o conceito de Diabo (pela Igreja Católica) e com expressões emocionais de um medo primitivo, bestialidade e sexualidade libidinosa presentes de forma arcaica na psicodinâmica do caso explorado. Além disso, o presente deus, de certa forma, fora vítima da dicotomização entre o bem e o mal, ficando marginalizado e reduzido apenas a seu prisma perverso, desvitalizando assim sua luz expressa na ternura, desejo e poética. 

A analogia da manifestação sintomática e psicodinâmica da paciente, entrelaça-se de modo fecundo com o simbolismo e imagem arquetípica do deus Pã, preponderando nessa relação, a negação e não aceitação desse mito em sua existência. Desse modo, brota-lhe constantemente a estagnação defensiva de símbolos desligados da consciência, tendo consequências para o seu bem-estar e adoecimento psíquico, como: fantasias apavorantes, medo da loucura, fobia de animais pequenos e frequentes prejuízos nas relações interpessoais. 

Conscientizando-me da importância do descortinar da sombra na personalidade do homem para a vivência e vislumbre de tesouros enterrados, além da possibilidade de religar a polarização dos opostos, percebi também que a sombra havia se tornado uma função estruturante defensiva devido à sua repressão na tradição ocidental judaico-cristã. 

A dinâmica patriarcal defensiva inadmite a vivência da inveja, raiva, traição, falsidade, orgulho, cobiça e veladas tendências assassinas nas relações sejam elas parentais, familiares e/ou sociais, pregando a premissa de que se devem enterrar tais “demônios” por detrás de personas convenientes, pois estes diabólicos sentimentos legitimam a violação das regras civilizatórias e a desunião relacional. 

Incitado pelo ambiente, o homem deve inexplicavelmente venerar e identificar-se, de maneira unilateral, com as características ideais da personalidade, tais como o amor, a caridade e a bondade. Todavia há que se refletir sobre a proibição maciça de se sentir o próprio mal subjacente dentro de cada um e escondido na sombra. Portanto, faz-se necessário meditarmos sobre a polarização da consciência naquilo que ela acredita ser o bem, uma vez que tal dinâmica psíquica pode asfixiar brutalmente o repertório inexplorado de símbolos excluídos da consciência e, constituir um acobertado perigoso que recusa uma parte de si mesmo, afastando desta forma a própria experiência com o Si Mesmo.

É de importância fundamental analisar a expressão patológica da sexualidade no cotidiano , envolvendo crianças e adultos acometidos não exclusivamente por criminosos, traficantes, drogados e toda categoria que possa “justificar” atos perversos por serem alvos causais da rotulação discriminatória social, mas, por impensados familiares, ícones dignos de “exemplo” nas áreas da saúde (médicos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros, etc.), sociedade (vereadores, policiais, etc.) e religião (padres, pastores, monges, etc.).

Enveredando diante de tal reflexão, é de suma importância e necessidade aclarar que as elucubrações aqui discorridas associam-se à condição psicológica e não teológica dos fatos e apontamentos narrados. A fim de permanecer coerente com as precauções propostas, o que desejo enfatizar é o aspecto psicológico acerca do fenômeno da sombra na psique humana abarcando sua natureza sexual, assim sigo uma orientação que se recusa a ultrapassar os dados objetivos do material descrito e, articular sobre o modus operandi da sombra do ponto de vista metafísico, transcendental e dogmático. 

Em linhas gerais, o presente trabalho traz como desígnio descrever e analisar o contexto da sexualidade, procurando apreender o aspecto da sombra a partir da realidade mitológica contemporânea, no transcorrer de um caso acompanhado em processo de psicoterapia psicodinâmica individual de orientação analítica. 

 

MATERIAL E MÉTODOS

Trata-se de um estudo em que adotamos como delineamento metodológico a modalidade de pesquisa Qualitativa Clínica, apoiada no quadro de orientação teórica e metodológica do procedimento Dialético. 

Minayo (2) afirma que a pesquisa qualitativa, diferentemente da pesquisa quantitativa, “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo nas relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. 

A presente pesquisa traz em seu bojo o exame detalhado de um Estudo de Caso delimitado e com contornos claramente definidos perante um caso clínico atendido em consultório particular entre junho de 2011 até dezembro de 2015. Ponte (3) considera que o estudo de caso seja uma investigação que se debruça deliberadamente sobre uma conjuntura específica onde supõe-se ser única ou especial, pelo menos em certos aspectos, procurando descobrir o que há nela de mais essencial e peculiar e, desse modo, colaborar para a compreensão global de certo fenômeno de interesse.

Os dados sobre a caracterização da paciente atendida referem-se a uma mulher, de 43 anos, morando em um mosteiro sob regime de clausura. A queixa apresentada inicialmente variava entre problemas relacionais, cognitivos, físicos ou biológicos e emocionais, orbitando primordialmente sobre dificuldades de memorização e relacionamento interpessoal.

INSTRUMENTOS 

A) Registro clínico escrito das sessões de Psicoterapia, tendendo-se a criar objetivamente uma memória permanente que documente situações e momentos do processo psicoterapêutico, no intuito de diminuir possíveis esquecimentos e distorções do material clínico. 

B) Produção gráfica realizada pela paciente por meio de desenhos livres e espontâneos, atrelando a tal processo a notificação das falas proferidas, amplificações e associações pungentes para as determinadas obras concebidas. 

C) Teste projetivo do desenho da Casa – Árvore – Pessoa (HTP), cujo objetivo fora o de compreender os principais aspectos da personalidade, bem como a forma de interação com as pessoas e com o ambiente. O HTP estimulou a projeção de elementos da personalidade e de áreas de conflito dentro da situação terapêutica, proporcionando uma compreensão dinâmica das características e do funcionamento do individuo.

 

A GÊNESE DO ENCONTRO DE ALMAS FERIDAS

Era em meados do ano de 2011, trabalhando numa Organização Não Governamental (ONG) que atendia crianças e familiares vítimas de maus tratos, que apreendi uma parceria estabelecida entre a presente ONG e o mosteiro ali próximo localizado. Identificando tal aproximação institucional, expressei à diretoria meu desejo em acompanhar psicoterapicamente as monjas do mosteiro, o desejo fora ouvido e prontamente consentido. 

Pode-se notar que o curador foi em busca de uma ferida inexplorada e, encontrou ali o significado do mitologema grego do médico ferido numa alma que, apesar de não mais pedir socorro, aceitou o convite de ser atendida no interior de um processo aparentemente desconhecido, ameaçador, mas conjuntamente transformador. 

Aquela que tenta curar suas feridas chama-se Glória , uma mulher de 42 anos, religiosa, que reside em um mosteiro sob o regime de clausura . A queixa apresentada inicialmente variava entre problemas relacionais, cognitivos, físicos ou biológicos e emocionais, orbitando primordialmente sobre problemas de memória e relacionamento interpessoal.

O “sim” expresso diante da estirada psicoterápica delineava aspectos importantes e imprevisíveis do processo; o caráter necessário de desnudar curativos que serviam mais para esconder feridas banhadas de dor e escandalização do que para curar, ou seja; trazer à luz inaceitáveis vivências de grande tensão que, remotamente, foram batizadas de “segredos”, devendo estas ser segregadas da consciência sob a lei de que esquecê-las, ajudava-a a sobreviver ou a morrer com suavidade. Além disso, germinava a possibilidade de ressignificação de uma fictícia quietude sintomática, acobertada sob um domínio em manter intacta a idoneidade do bem supremo sob o ponto de vista pessoal e institucional que professa.

A resistência e esforço na manutenção da cicatriz espessa e rígida (fruto de uma prolongada mania ruminativa, imposições tirânicas, perfeccionismo, medo da reprovação alheia e necessidade de controlar tudo), davam espaço ao resplandecer de relatos brutais, porém libertários.

 

A HISTÓRIA DA DOENÇA ATUAL- O ABUSO DE UM SER NO PARAÍSO .

“Eu já estava dentro do mosteiro e tive que dormir com armas”

 

Glória, com 18 anos, estabelece-se no mosteiro onde passa como estudante aspirante e asceta da vida monástica. Ali fora o lugar que acreditou ser um pedaço do Céu na Terra. No monastério, lugar de trocas e de encontros banhados pela experiência vivida das realidades da alma entre o humano e o divino, pronunciam-se orações e juramentos de uma devoção, cuja natureza pode diferir da genuína mensagem encontrada na Sagrada Escritura. 

A precocidade, jovialidade e predisposição amorosa de Glória pareciam ser elementos banhados de potenciais e vitalidade rumo à jornada da santidade e caridade, entretanto tais virtudes veladamente também seduziam uma senhora ainda pouco conhecida pela jovem ingênua.

Na certeza de estar num território Celestial, era de praxe Glória deixar a cela pessoal sempre destrancada no período noturno, tendo como desígnio ser despertada para as matinais orações e adorações no Santíssimo, porém numa dada noite não houvera o mesmo ritual e ainda assim fora mantida a porta encostada. Logo, enquanto Glória dormia, adentrou-se pela porta uma monja de maior idade e sorrateiramente subiu em suas costas, tampando-lhe a boca e articulando sussurros hostis de que, se ela gritasse, toda a culpa cairia sobre ela; a mais novata e desacreditada da casa.   

 

Numa das noites em que eu estava no meu quarto, tinha-se o hábito de deixar a porta encostada sem trancá-la, para que no momento da adoração, em que a monja levava o sacrário quarto por quarto pudéssemos adorar. Com a porta estando encostada, quem entrou por lá foi aquela monja (abusadora) [...]que entrou e fez o abuso, naquele momento eu falava pra ela pra que ela parasse com aquilo por que se alguém as visse, nós nos prejudicaríamos e se ela não se importasse nem um pouco com sua vocação, eu sim me importava. Mas ela não me ouvia e só me dizia que, se seu falasse algo do que estava acontecendo quem iria se prejudicar era ela mesma; ela me dizia: “se você falar ou gritar eu vou ti prejudicar! Todo o peso vai em cima de você!!”. Me lembro nesta vez, que o que ela fez foi tão cruel, mas tão brutal que não tem comparação com nada!! Aquela foi a primeira vez que vi naquela mulher a imagem de animais, tamanha destruição que me causava... não tem comparação a brutalidade que me fez! (GLÓRIA, 23.04.2014)

 

Na espera pela “visita” Divina, foi surpreendida pelo próprio Demônio, conforme a paciente verbalizara tal experiência de brutalidade, iam-se enchendo seus olhos de água, mas logo procurava “retê-las” em seus olhos ou limpá-las prontamente com um lenço pessoal que trazia consigo no bolso dentro de seu hábito.

A cela, espaço de retiro e contemplação, dera espaço a peripécias onde os velados deleites selvagens retroalimentavam um jogo de prazeres onde uma desejava fazer e a outra “se deixa fazer” e, apesar da bestialidade envolvida no ato objetado, Glória relatara sentir neste momento uma misteriosa mão que a protegia.

Os abusos sexuais aconteceram quando Glória tinha 19 anos e perduraram por 5 ininterruptos meses no período noturno, esta omitia (por medo, segundo ela) o que estava vivendo, tanto para as irmãs próximas quanto para a sua família. 

O término das noites de ataques e da promiscuidade sexual, deu-se quando a abusadora fora embora do mosteiro e, no intuito de puni-la, Glória relatou a onda de abusos sexuais sofridos dentro do mosteiro para a sua superiora da ordem. Esta, além de não acreditar na fala de Glória, propagou para toda a comunidade monástica o ocorrido. Dessa forma, passou por um tribunal eclesiástico onde confessou que foi abusada por uma monja maior, mas a igreja decidiu não punir a abusadora, procurando minimizar e acobertar o caso. Tais condutas fomentaram e solidificaram em Glória um sentimento de culpa e infidelidade abissal pelo que lhe ocorrera, ou melhor, pelo que “ela” fizera ao trair a fidelidade dela para com seu marido Jesus.

 Numa certa ocasião, Glória foi então confessar-se por “suas contínuas traições” e enquanto relatava a brutalidade dos abusos, fora culpada pelo padre por seus atos libidinosos com a madre mais velha. 

A busca pela justiça dava espaço a repulsa de qualquer confissão ou explicitação do ato, o distanciamento e enrijecimento de seu mundo interior ao mundo monástico arquitetava uma nova forma de se relacionar. Nesta época, Glória começou a ter alucinações auditivas e procurou escrever suas experiências sombrias num caderno com palavras em forma de signos . Quando as irmãs flagraram o caderno, não entenderam o significado das palavras e então ela decidiu depois disso colocar fogo. Tais episódios solidificaram a reedição de permanentes abusos emocionais posteriores aos sexuais e foram o ápice da humilhação, desprezo, incompreensão e ação inquisitorial vivido por Glória.

Paralelo aos abusos sofridos, Glória numa dada noite se deparou ao chegar a seu quarto com inúmeros animais pequenos espalhados por toda parte, a espécie que mais se lembrava fora o chamado “Campamocha”, que são conhecidos no Brasil como “Louva Deus”. Ao olhar aterrorizada para tal cenário pensava: “porque eu e não outro?!”. Abria-se ali um campo explicativo de que se tratava de “coisas do Mal, coisas de Bruxaria”, uma vez que tentando repeli-los, jogava água benta em vão e, ao deitar, adormecer e despertar inexplicavelmente não havia mais nenhum animal no quarto, nem vivo nem morto. Emerge a partir daí, o medo abissal por animais pequenos: um medo irracional e inexplicável.

Buscando oxigenar sua existência e corpo, Glória sai do mosteiro depois dos frequentes abusos, ficando distante deste por três anos. Neste período, procura não expor o que lá dentro viveu, defendendo o ocultamento dos abusos e a dissimulação de uma realidade louvável do comportamento das monjas, encobrindo a verdadeira realidade. As justificativas de tais comportamentos inautênticos se davam em decorrência de; tentar se firmar e não desistir da sua vocação e, o medo profundo da vergonha e retaliação institucional, social e familiar.

Ao retornar ao mesmo mosteiro depois de 3 anos, Glória busca sua vocação ensejada e, a par disso, hasteia como lema de sua sobrevivência a Lei de Talião; “olho por olho dente por dente”. A partir dai, procura isolar-se dos relacionamentos interpessoais por receio de possíveis ataques e críticas que poderiam fazê-la reviver os insultos remotamente vivenciados na época do abuso sexual. Além disso, quando em seu cotidiano, recebia críticas por parte das irmãs, interpretava-as como ofensas e logo procurava rebatê-las. Dessa forma, sua dinâmica contrapunha-se à sua antiga passividade e ingenuidade, passando a um comportamento agressivo e banhado de visões ameaçadoras acerca da realidade a sua volta.

O corpo tão vitimado pelo terror e lascívia sexual começava a ser visto como um vil peso para alma, a dimensão soma é digna de flagelo e calvário; o corpo não se harmoniza com a psique, a psique não aceita o corpo obsceno e imundo. 

Glória relata que não só tivera vontade de se suicidar, como já o tentou quando tomou vários comprimidos que lhe assentou um risco mínimo de vida. As tentativas só não foram mais drásticas em virtude das fortes lembranças dos pais ainda vivos. Quando abusada, manteve as aparências para se firmar na vocação e não ser motivo de vergonha coletiva, doravante ao instante em que começa a falar sobre o abuso, tem um espaço em que pode sentir os inaceitáveis sentimentos de raiva, ódio, repulsa e, o desejo de matar aquela que a abusou e se matar.

Em seu repertório de comportamentos, não se reflete a sensação de possuir escolhas genuínas, compatíveis com desígnios de autonomia O drama do abuso sexual sofrido e sua luta diária em tentar esquecê-lo, pareciam instaurar uma saga que está além de qualquer movimento de autonomia; uma saga domada por complexos onde a vontade de poder trajada de uma estrutura defensiva patriarcal, avassala qualquer tonalidade afetiva do feminino.  

 

O MITO DE PÃ

As descrições aqui tecidas acerca da mítica de Pã acontecem a partir dos escritos encontrados em figuras representativas da mitologia como Ovídio (4), Hesíodo (5), Pierre Grimal (6), Mircea Eliade (7) e Joseph Campbell (8). 

O imaginário mítico da Antiguidade Grega contempla não somente imagens de deuses, heróis e/ou humanos, mas ainda outro rol de criaturas que se embaraçam entre aquelas e não se encaixam em nenhuma classificação específica. Essas entidades mitológicas ponderadas como “secundárias”, não possuem o mesmo status que as divindades localizadas no Olimpo e, por apresentarem um caráter essencialmente híbrido e, de certo modo, monstruoso, exibem traços tanto divinos quanto humanos ou, mais marcantemente, animalescos. Abarcam-se neste panteão de entidades figuras como as de faunos, centauros, ninfas e sátiros, onde o mais famoso deste último grupo fora Pã, também chamado pelos latinos de Fauno e Silvano e, identificado com a divindade egípcia itifálica Min. (9)

Pã é filho de Hermes (imortal) do monte Cilene e da filha de Driops; a ninfa (mortal) Dríope. Quando ele nasceu, a mãe teve medo do filho “monstruoso” que acabava de trazer ao mundo, ao vê-lo, a nutriz abandona-o e foge, espantando-se com aquele olhar “terrível” e aquela barba tão cerrada. No bojo desta rejeição materna justificada pela abissal animalidade filial, temos um fato importante; a beleza também tem as suas perversidades e animalidades.

Entretanto o pai Hermes, mensageiro dos deuses, envolveu o recém-nascido numa pele de lebre e levou-o para o Olimpo. Colocou o infante junto de Zeus e mostrou aos outros deuses que se alegraram ao vê-lo, sobretudo Dionisio (cujo cortejo figurou de bom grado Pã, tão semelhante a Sileno e aos Sátiros). As divindades do Olimpo deram-lhe o nome de Pã, por ter trazido alegria ao coração de todos e, também por ter recebido de todos os divinos, benesses ou dotações, seu significado em grego quer dizer “tudo”.

Pã é também uma divindade com uma considerável atividade sexual: em sua sexualidade desenfreada, perseguia e transava com ninfas e mancebos. Sempre que a sua incursão amorosa era infrutífera, procurava sozinho um meio de se satisfazer, masturbando-se, porém, as ninfas zombavam incessantemente de Pã em virtude do seu rosto repulsivo. (10)

Um dia percorria Pã o monte Liceu, segundo o seu hábito, e encontrou a ninfa Syrinx (do grego sýrinx, sýringos, que significa Lua) que era uma das Hamadríades (ninfas das árvores) da Arcádia e que também jamais quisera receber as homenagens das divindades, pois só tinha uma paixão: a caça. De acordo com a versão que nos oferece o poeta latino Ovídio (11) em seu poema “As Metamorfoses”  , narradas ainda no Livro I (vv. 690-710), relata-se sobre esse momento mítico. 

 

“Nos gélidos montes da Arcádia,

entre Hamadríades nonácrinas famosa 

Náiade houve; as Ninfas chamavam-na Sírinx.

Mais de uma vez fugiu de Sátiros e deuses,

que a perseguiam em umbrosa selva ou campo

fértil. Por gosto e virgindade dedicou-se,

à deusa ortígia; ela também poderia 

passar-se por Diana, cingida qual Latônia,

se em chifre não lhe fosse o arco e em ouro o desta.

Assim mesmo enganava. Ao voltar do Liceu,

vendo- a Pã, com agudo pinho na cabeça,

disse-lhe algo...” Restava contar como a ninfa 

desprezando-lhe os rogos, fugiu pelos campos,

até chegar às águas calmas do arenoso

Lado; ali, impedida de continuar,

pediu às límpidas irmãs que a transformassem;

e Pã, quando já crê ter Sírinx junto a si, 

teve-lhe, não o corpo, mas palustres cálamos;

enquanto aí suspira, o vento no caniço

fez um suave som símile a um lamento;

o deus, tomado pela doce e nova arte,

disse: “Estarei sempre em diálogo contigo!” 

e assim , com cera unindo os diferentes cálamos,

deu a este instrumento o nome da donzela.

 

A transformação de Siringe em bambuzal é a única maneira que Pã tem de alcança-la, a criativa idéia de unir com cera caniços de vários tamanhos origina uma flauta. Todavia, tudo o que obtém dela é o som que emite e que o encanta. A partir de então, conserva o instrumento por ele forjado e batizado com o nome da tão ensejada ninfa.

 

REFLEXÕES SIMBÓLICAS

Pã é repetidamente retratado por seu ímpeto erótico prestes a alcançar seu alvo feminino. Ao pressentir a possível negativa das ninfas a seus flertes, é possuído por uma impetuosidade animalesca (logo; extremamente primitiva) que o mobiliza a conseguir, sob qualquer custo, o que deseja imoderadamente. De acordo com Ulson (12), o Deus Pã associa-se com a sexualidade, sobretudo a desenfreada e ao estupro, entre muitas das suas investidas sexuais.

Um dos aspectos centrais na mítica do deus Pã são as frequentes ridicularizações e rejeições do feminino que o assolaram desde o seu nascimento com o abandono de sua mãe, horrorizada por seus aspectos físicos até as infindáveis e frustrantes investidas às ninfas. As irrupções de Pã ao feminino representado pelas ninfas parecem traduzir simbolicamente tentativas de estruturação com o feminino primordial, a fim de se ressignificar a experiência materna remota e promover a partir disso não só a aceitação materna, mas também a sua própria auto aceitação. Nota-se, em Pã, a necessidade permanente de aproximação do feminino, para que assim possa ocorrer a conciliação de seu tão ensejado objeto de amor.

Quando a casta ninfa Siringe se transforma em um feixe de caniços para fugir dos indesejáveis abraços de Pã e, este a corta em vários pedaços dos quais faz uma flauta, observa-se, aqui, o deus Pã solitário e em atitude contemplativa com sua flauta, ou melhor; com sua ninfa paradoxalmente tão próxima e tão distante. 

Como nos aponta Jung (13); a solidão não é necessariamente oponente do companheirismo, uma vez que ninguém é mais sensível ao companheirismo do que o homem solitário e, o companheirismo só floresce quando cada pessoa se lembra da sua individualidade e não se identifica com os outros. Logo, Pã abstém-se de sua aparência animalesca e selvagem anseio pela vida desregrada, mergulhando em uma atmosfera contemplativa e comovente.

O mitologema de Siringe metaformoseada em feixe de caniço nos coloca diante de dois aspectos importantes deste momento mítico; o primeiro é que apesar do impulso libidinoso de Pã ser difuso e geral, há uma proeminência em ninfas que tenham algum tipo de ligação antropomórfica com a árvore (as chamadas Hamadríades e/ou Dríadas) o que corresponde à necessidade de integração da figura materna que lhe rejeitou, o segundo advém da imagem de um feminino internalizado em sua origem todo fragmentado e petrificado pelas formas do masculino de caráter violento personificado pelo aspecto sombrio de Pã. 

Do ponto de vista psicológico, tal narrativa simboliza a neurose se constituindo como o represamento da força criativa e a petrificação da energia vital, ou seja; elementos como a espontaneidade, aconchego, apoio e continência são privados e retidos não só da experiência relacional, mas subjetiva. Privilegia-se, assim, a força, controle, conservadorismo e superioridade intelectual, rivalizando e desvalorizando a possibilidade de transformação e libertação do feminino.

No meu entender, em Siringe observa-se a corporificação transubstanciada numa sonorização criativa e reprodutiva respectivamente, onde o tangenciamento do tato converte-se na escuta contemplativa e, a solidão infrutífera na solitude que emana ternura. O abandono primordial materno e medo abissal de que experiência remota se ecoe, dá espaço ao viver o aqui agora num instante eterno. Não se trata de reprimir, negar ou promover deslocamentos obsessivos perante as inúmeras renúncias vividas, mas simplesmente cantá-las, transformando dores da alma em música que passe a figurar histórias, com letras e ritmos gerados criativamente.

Neste contexto, o poder da música cessa o pensamento e caracteriza-se como o elemento-símbolo da função sensação, tocando o coração das ninfas aspiradas por Pã, suavizando a função julgadora e, sendo capaz de interagir com o mesmo a partir do que lhe é essencial. Desta forma, os instrumentos musicais metamorfoseados apresentam-se como representações da função sentimento, onde o alfabeto e a escala musical expressam o pensamento atrelado à função de organizar e preparar o conhecimento a ser assimilado (14).

A música, portanto, é o condutor para se atingir o coração, a emoção; o meio universal de diálogo entre os homens, com a capacidade de romper fronteiras, unir elementos díspares, harmonizar desarmonias, converter em melodias sons dispersos e, assim, acercar-se do que parecia inatingível (15). 

A mítica de Pã, reiteradamente, mostra-nos como a base do desejo não é a cópula, mas a idéia de voltar a ser criança, penetrar na mãe para novamente dela nascer e assim, por si mesmo tornar a gerar a si próprio. Um dos meios de se atingir isto é transformar a mãe (transfigurada na imagem das ninfas) num ser diferente para fazê-la desaparecer, ou melhor, retransformá-la depois do nascimento. Dessa maneira, a procura incessante de Pã não é a coabitação incestuosa, mas o renascimento .

Ademais, Pã simboliza a necessidade de transcender seu caráter animalesco, assustador e sua violência dirigida à sexualidade em algo desejável e que restitua sua humanidade enquanto um Ser digno de Amor (uma vez que o Amor simbolizado na imagem de Eros – evidenciado em inúmeras obras de arte, que é constantemente aguçada pela mira do poderoso filho de Afrodite  - evidencia sua devotada necessidade de transcender as aparências animalescas e transformar o bestial em encantador) e não de Anedota e ridicularização. Encontra-se, assim, uma dimensão oculta em Pã que revela seu Ser Integral; um Ser que não subjuga a força do feminino, mas dele se utiliza para proferir canções que fazem bailar e harmonizar as polaridades tão dispares, porém necessárias e complementares.

 

O COMPLEXO DA ABUSADA/ O COMPLEXO DO BODE EXPIATÓRIO - A EXPRESSSÃO DO NADA FAZER E O NADA FALAR COMO UMA POSTURA SOMBRIA DO ABUSO 

A remoção de conteúdos inaceitáveis da consciência do ego não significa que serão eliminados em suas qualidades, também não são impedidos de agir, continuando a existir, porém, agora nos Complexos que são deslocados da observância da consciência, podendo assim existir de modo irrefreado e destrutivo. Hoje em dia todo mundo sabe que as pessoas "têm complexos", mas o que não é bem conhecido é que os complexos podem "ter-nos". (16)

Como regra geral, os complexos em sua natureza primordial, habitam o reino do inconsciente, logo isto lhes outorga uma liberdade de atuação. Por inúmeras foram as vezes que Glória se exaltava sob a emoção de um complexo: 

 

“Se eu tivesse feito assim... não teria pecado”. (30/11/2012), 

“Não quero estar triste, não quero ser assim” (25.01.2013) 

“Eu quero esquecer todo o meu passado” (09.10.2013) 

“Eu não queria me sentir como que magoada, triste... não há tempo para estas “melindrezas”... como que trocar de pensamentos. Eu sou a primeira pessoa a não aceitar essas coisas que eu sinto... eu não me permito sentir isso... e eu sei que o fato de eu não aceitar é pior... não é para sentir tristeza; se eu fui criada para ser feliz, porque eu sinto isto?!” (29.08.2014).

 

Por diversas vezes, os comportamentos de Glória caracterizavam-se de maneira passiva diante das divergências com as irmãs de sua convivência. Porém, tal postura dotada de um silêncio aparentemente paciencioso, camufla um verdadeiro horror que transferencialmente a remetia à da imagem da irmã que a “atacou” sexualmente. 

O modelo verbal de Glória consiste em sofrer no silêncio lamurioso, oferecer eterna gratidão, engolir a raiva, medir as palavras, usar a lábia da bondade para sair de situações e conflitos, dizer as palavras certas para agradar o interlocutor, mudar de opinião, ou dizer preponderantemente o que é necessário, para sobreviver, logo, copia o que ouve e se expressa mecanicamente ao ambiente atemorizado. (17)

A consciência de Glória acerca da monstruosidade sua e alheia, prontamente, são substituídas por verberações e diversos ensinamentos da mítica cristã. Tal movimentação representa uma postura cristalizada pronta para, segundo Costa (18), “com uma régua de virtudes à mão [...] dirimir judiciosa e incansavelmente, o que é o joio e o que é o trigo”.

A postura silenciosa promovia um conluio entre aquela que é atacada (Glória) e aquela que ataca (demais irmãs), constituindo-se uma espécie de dever a ser cumprido nesta ordem. Tacitamente, Glória revive a experiência do abuso quando (1) se abstém de suas idéias, pensamentos e valores, (2) estabelece relações assimétricas e (3) perpetua o fanatismo à modéstia, penitência e ao dever. Tal conjuntura compõe condição primordial de uma Estrutura Arquetípica de Dinâmica Patriarcal Defensiva.

Enquanto no âmbito coletivo à cega submissão coroava os comportamentos da paciente, perenizando relações impositivas e de tutela, sentia medo do poder ameaçador que jazia acorrentado em seu âmago. Extrai-se de seu intimo que o “calar misericordioso” evidencia muito mais sentimentos de sua condição tirânica do que de paz de espírito . Tal axioma ancora-se na fala da própria paciente: “Sabe, enquanto ela falava eu ficava quieta e, chegou uma hora que eu já não mais a ouvia e somente falei: “Você já acabou?!”, então quando isto passou eu vi o próprio demônio em mim e tinha vontade de bater tanto nela... vontade de matar mesmo!” . 

 

Na fantasia dessa mulher, ninguém  gostava dela, ninguém a levava a sério, ela era alguém a ser desprezado. [...] Aliás, ela era impelida a provocar rejeição por parte do seu ambiente de maneira a obter provas verdadeiras da sua inutilidade. [...] Ela não podia ver e se relacionar com ninguém de uma maneira mais ou menos realista. Todo mundo era apenas um objeto do seu próprio medo e da sua necessidade neurótica de ser rejeitada (JACOBY (19), p. 74, 1984)

 

A grande maioria das condutas da paciente é avaliada por esta como insuficiente, uma vez que seu crivo de julgamento e percepção é forjado pela maciça idealização (de perfeição e candura) e rigidez de personalidade. Isto se torna claro, por exemplo, quando Glória alicerça como meta aceitar e integrar a experiência do abuso sexual à sua pessoa, a par disto, apesar da tomada de consciência e ânsia elevada para a conexão Luz-Sombra, não há a integração de tal conteúdo emocional à esfera do Ego. Logo, não lhe ocorre qualquer transformação a nível de estruturação de identidade, visto que saber de algo (eu preciso aceitar o que me aconteceu) não significa ser algo (eu aceito o que me aconteceu). Segundo Jung (20), nestas circunstâncias existe a máxima tentação de seguir simplesmente o instinto de poder e identificar o ego, sem mais nem menos, com o Self, para alimentar assim a ilusão de um domínio do ego.

“Eu sei que Deve ser assim! Eu sei que Tem que ser assim! Eu, enquanto monja consagrada, não devo sentir isso (raiva)”.  Aqui, vê-se a fala de uma persona inflada com conteúdos idealizados do que se deve ter uma monja consagrada. Glória ancora-se na onipotência de seu papel social, ou melhor; em sua persona, realizando deste modo; (1) uma luta contra a natureza rebelde de seus próprios instintos e (2) uma negligência e não aceitação de sua importante dimensão psíquica, ou seja, de sua sombra. 

O aquietar-se de maneira inerte diante do meio atuante e das relações humanas, exprime o caráter indomável de repulsa à possibilidade de errar e de ver ameaçada sua condição santificadora de quem age com constância e paciência efervescentes. Trata-se da falsa idéia de renúncia do seu próprio poder “não desejado”, mas moral, comunitária e naturalmente imposta.

 

A CONEXÃO ENTRE SINTOMATOLOGIA E PSICODINÂMICA COM O SIMBOLISMO E IMAGEM ARQUETÍPICA DO DEUS PÃ.

As conjecturas e racionalizações abstratas expostas necessitam da descrição do processo tal como se apresenta na experiência imediata. A exposição e articulações do caso clínico incorporado a uma leitura de expressões mítico-arquetípicas da psique, objetiva exemplificar a possível construção de um sintoma físico e demandas alicerçadas na história afetiva da paciente. Apontaremos aspectos que podem escapar à compreensão da paciente, mas que se mostram lógica e simbolicamente encadeados em seu discurso e na sua história de vida.

Assim como Pã sofrera a ferida da rejeição original e esta parece disseminar e determinar o modus operanti de seus relacionamentos posteriores , no bojo das habituais dificuldades interpessoais de Glória há uma constante sensação de estar revivendo ataques abusivos à sua pessoa vítima do ato original (aqui se tem a vivência de uma profunda confusão mental, onde se amalgamam simultaneamente a sensação de ser vítima e culpada, sentir prazer e dor diante do abuso). 

Quando Glória é abusada, ocorre-lhe um íntimo amalgama entre o traumático e o erótico, a culpa alheia e a sua culpa; é como se parte dela cresse na brutalidade do ato sofrido e se visse como vítima e, outra parte “compactuasse” com o ato, no momento em que se sentiu certo prazer.

Desta maneira, orbita-se fantasias de rejeição; numa espécie de paranoia, Glória solapa as relações que aparentemente não se vinculam com o abuso sofrido, situações de  reprovações, discussões e críticas são vistas como lembranças do julgamento antigo que sofreu. Logo, em reuniões de grupo esquiva-se (através do silêncio defensivo) de situações interativas e de incompreensões relacionais, temendo ser julgada coletivamente tal como foi remotamente.

A partir do momento em que Glória sofreu a experiência do estupro, se constelaram em sua psique regências míticas de natureza extremamente primitivas, sendo uma delas a de Pã. Este, mantido subterraneamente na consciência e não integrado enquanto uma dimensão inerente à natureza humana, vitimiza Glória à possessão de impulsos, terrores, fobias e desenfreada fantasia sexual (todos dinamizados na vida instintiva e captados pela consciência em forma de sintomas e pecados que não deveriam ser vivenciados por uma monja).

Quando a vida impõe um papel sexual a Glória, seja lá quando os calores do desejo invadem seu corpo ou nas fantasias masturbatórias, o que se oferece à existência é a traumática memória do abuso e uma assustada ingenuidade que, por não serem conectados com a luz da Consciência, transitam num círculo vicioso que traz obsessivamente à cena mental imagens de desejos incompreensíveis que resultam numa repulsa ao corpo (a dimensão soma é visualizada de maneira distorcida enquanto uma sujeira que deve ser severamente punida e extirpada pelas máculas proferidas à sua alma) e à erotização da vida como um todo.

Ora, na mítica de Pã é difícil apreendê-lo como alguém de uma “natureza ruim”, ele apenas apresentava-se como indomado, amoral e natural e, a paralisia de Glória era o que a levava ao terror (geralmente) sexual. A energia de contenção que Glória procurou manter Pã em sua caverna, vergonhoso e oculto, é a mesma que pode ser liberada com um efeito imensamente poderoso se houver a coragem de encarar Pan (21).

Após inúmeras resistências, procurei estimular a paciente a expressar-se através de desenhos. A expressão do mundo interno de Glória no papel constitui um esforço por traduzir o indizível em formas concretas e visíveis, como afirma Jung (22), “nesta fase, passa a ser ativo. Passa a representar coisas que antes só via passivamente e dessa maneira elas se transformam em um ato seu. Não se limita a falar sobre o assunto. Também o executa”.

Os desenhos executados por Glória, conferem a liberação e, consequentemente, libertação da energia obstruída e impregnada de rudes, primitivos e vergonhosos impulsos sexuais. Observa-se, dessa maneira, que as manifestações inconscientes de Glória expressas nos relatos, sonhos e desenhos livres, evidenciam analogias simbólicas de sua psique individual com a mítica de Pã, além de apresentarem-se como símbolos ilustrativos do processo de transformação da paciente.

À medida que o processo psicoterápico avança, observa-se que a influência das figuras ameaçadoras gradativamente míngua enquanto que figuras de realização aparecem com mais força. Há desta forma, uma redução do pessimismo e um crescimento do otimismo.

 Pode-se afirmar que a flauta de Pã fora usada enquanto um instrumental artístico para a expressão de sentimentos e afetos acoplados, de maneira correspondente o desenho livre e dirigido tivera a mesma função quando efetuados por Glória em seu processo libertário. Ao transpor, por vezes, inúmeras resistências “apolíneas” que vigoravam seu pensamento frio, petrificado e rígido de trocas, Glória perpassa pela saga da heroína interna e compõe escritas e imagens acerca de sua história banhada de feridas, transformações e renascimentos.

 

CONCLUSÃO

Durante os atendimentos com Glória, por vezes era nítida uma singela evolução de seu quadro clínico, todavia o olhar dela para tal aspecto era pequenino e insuficiente diante das exigências e idealizações fomentadas pela mesma. Era preciso olhar realmente para aquilo que exalava em seu material psíquico (sonhos, desenhos, escritos), e manter no tocante clínico uma esperança consoladora na vida de Glória. 

Diante de inúmeras falas em que sua existência fora dessacralizada, Glória paulatinamente enveredava seu olhar sob um novo prisma de valorização de sua pessoa sem com isto se achar egoísta. O questionamento sobre as imposições e ordens que se autoimpunha começavam a ser forjados e o dever reativo e impositivo advindo da Dinâmica Patriarcal Defensiva, paulatinamente fora transgredido e transmutado no dever regido pela escolha e o respeito.

Deus Pã como correspondente das expressões interiores de Glória, advém de forma hierofânica dentro de parâmetros mais flexíveis em seu modo de ser. Os conflitos infantis , repressões e julgamentos bem como os abusos sexuais vividos, apresentam-se enquanto aspectos do feminino de Glória todo pulverizado/dissociado em sua psique. A junção gradativa deste feminino no interior de Glória, tal como Pan fizera com Syrinx, transformava a rigidez ideológica, moral e psíquica em oportunidade de escuta e contemplação de sua natureza unitária.

Tal atitude de Glória, conforme Campos & Chagas (s.n.t.), equivale à entrega do ego à sabedoria do Self, a força motriz e organizadora da psique, possibilitando em prol de sua evolução a constelação de elementos inconscientes que até então não tinham ascensão à consciência. 

Sentia ali na atmosfera institucional algo de inverossímil e por Glória algo semelhante ao narrado pelo admirador de Harry Haller, o Lobo da Estepe de Hermann Hesse (23): “essa resistência, com o decorrer do tempo, foi-se transformando em simpatia, em compaixão para com aquele profundo e permanente sofredor, cujo isolamento e cuja morte íntima eu contemplava”. 

O tratamento analítico interpõe duas psiques bailando numa gama de sentimentos e instâncias viscerais. Ideais egoicos, cuidado, apatia, medo do fracasso, compaixão, lágrimas, sonolência, escuridão, virtudes, desesperança e tantos outros sentimentos e desejos, alternam-se a partir de um encontro e narrativa singulares. 

Contemplar a beleza dum processo analítico significa apreender o sacrifício, aproximação e transformação que ambas as pessoas e instâncias passaram: Syrinx e Pã, Masculino e Feminino, Terapeuta e Paciente, Luz e Sombra. A frutificação deste encontro divino acarreta na morte de estruturas arcaicas autônomas e patológicas, gestando assim um novo e imortalizado Ser em Glória.

 

NOTAS DE RODAPÉ

1. O homem tão anulado chega ao ponto de se considerar um rato.

2.  Abuso sexual, pedofilia, assédio sexual, etc.

3. O nome do sujeito foi inspirado em pequenas invocações embutidas em orações e cantos litúrgicos. Os demais personagens aqui citados são todos fictícios e, assim, fora feito no intuito de preservar suas reais identidades.

4. Embora o voto de clausura vigore na ordem, era permitido por determinação do mosteiro local que as religiosas pudessem sair do mosteiro para consultas médicas ou receber profissionais para atendimentos específicos necessitados.

5. Cabe salientar que o extrato aqui explicitado de axiomas à religião não constitui uma entonação de caráter depreciativo em seu aspecto genérico, mas específico.

6. Obra que remonta aproximadamente ao século 8 d.C.

7. Jung ilustrou tal movimentação com a analogia dos mitos do incesto, de renascimento e solares em Símbolos da Transformação (1986) p.213.

8. Ver: “Pan et Syrinx – Poussin, 1637 (Óleo sobre tela, 82 x 106 cm – Gemäldegalerie, Berlin)” e  “Pan et Syrinx – Boucher, 1759 (Óleo sobre tela, 42 x 32 cm – National Gallery, London)”

9. Cabe ressaltar após as discussões em que Glória mantinha-se calada, a sintomatologia de Bruxismo manifestava-se de forma bastante intensa.

10. Sessão de Psicoterapia do dia 24.02.2015

11.  A ponto de fazê-lo se aproximar ferozmente via ataque, mediante o pavor em vivenciar a reedição da rejeição elementar.

12. Moralidade imposta a Glória desde a infância, que se empenhava em reprimir os desejos de natureza inconsciente. 

 

REFERÊNCIAS

1. Dostoievski F. Notas do subterrâneo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2005.

2. Minayo MCLS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. Petrópolis: Vozes; 2006.

3. Ponte JP. Estudos de caso em educação matemática. Bolema; 2006. Este artigo é uma versão revista e atualizada de um artigo anterior: Ponte JP. O estudo de caso na investigação em educação matemática. Quadrante; 1994.

4. Ovídio. Metamorfoses. Tradução do inglês de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo, Madras; 2003.

5. Hesíodo. Teogonia: a origem dos deuses. 3ª Ed. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras; 1995.

6. Grimal P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2011.

7. Eliade M. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva; 1972.

8. Campbell J. O Herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento; 1949.

9. Campbell J. O Herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento; 1949.

10. Ulson G. Aspectos psicodinâmicos do pânico. Junguiana - Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica; 1984; v. 2.

11. Ovídio. Metamorfoses. Tradução do inglês de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo, Madras; 2003.

12. Ulson G. Aspectos psicodinâmicos do pânico. Junguiana - Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica; 1984; v. 2.

13. Jung CG. Sonhos, Memórias e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2006.

14. Baptista SMS. Hermes. In Alvarenga. Z. M., Mitologia Simbólica: estruturas da psique e regências míticas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2010.

15. Baptista SMS. Hermes. In Alvarenga. Z. M., Mitologia Simbólica: estruturas da psique e regências míticas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2010.

16. Jung CG. A natureza da psique. Petrópolis, RJ: Vozes; 2000.

17. Koening K. Engolir sapo pesa na balança. Rio de Janeiro: Best Seller; 2009.

18. Costa, JF. Dias de sombras, dias de luz. Estado de São Paulo, São Paulo, 01 abr. 2007. Aliás, pg. J4 –1/4. Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20070401-41438-spo-202-ali-j4-not/busca/Dias+sombra+dias+luz. Acesso em: 05 mar. 2015.

19. Jacoby M. O encontro analítico. São Paulo: Cultrix 1984.

20. Jung, CG. A natureza da psique. Petrópolis, RJ: Vozes; 2000.

21. Burke JS, Greene L. O Tarô Mitológico. São Paulo: Madras; 2012.

22. Jung CG. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes; 2011.

23. Hesse H. O lobo da estepe. Rio de Janeiro: Record; 2015.

 

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